segunda-feira, 29 de agosto de 2016

MEMÓRIA DE DOIS MOMENTOS COM O CERAMISTA JOSÉ FRANCO


Ia amiúde ao Sobreiro e sempre que me apetecia pão com chouriço, dava um pulo à aldeia do José Franco.

Conversava diversas vezes com o ceramista, que se encontrava quase sempre a trabalhar, instalado na sua pequena oficina, logo à entrada do edifício, onde ainda hoje se vendem os artigos de cerâmica.
Numa dessas ocasiões, ao ver o artista a criar, verifiquei que a figura em barro que moldava, tal como as outras que produzia, não só se encontravam descalças como apresentavam também um pormenor interessante: tinham o dedo grande do pé esquerdo levantado.

José Franco sorriu e disse-me que os homens do povo andavam a maioria das vezes descalços e que, quando estavam na taberna e bebiam um copo de vinho, mostravam inconscientemente a sua satisfação, levantando o grande dedo do pé.

Noutra ocasião, acompanhado pela minha mulher, comprámos um postal onde estava representado o artista com uma das suas obras. Pedimos-lhe que o rubricasse e ele não se fez rogado: pediu que o segurássemos e, com o polegar sujo do barro, imprimiu a sua impressão digital.

“Estou a utilizar o meu instrumento de trabalho”, referiu com a maior simplicidade, convidando-nos a beber a tradicional canequinha de vinho na sala seguinte, caso nos apetecesse.


Jorge C. Chora

terça-feira, 16 de agosto de 2016

A NEGA DE ÉOLO

                                                           

A voz ouvia-se com enormes distorções e, caso a cantora não fosse conhecida, o recinto ficaria deserto, pela notória falta de qualidade da actuação. Ela esforçava-se, sem qualquer sucesso, pois o sistema de som, que a organização disponibilizara, era péssimo ou, na melhor das hipóteses, completamente inadequado.

A cantora dispunha de alguns trunfos: era relativamente jovem, simpática e trajava uma minissaia que não escondia umas elegantes, compridas e belas pernas.

Um vento forte começou a fazer-se sentir. De repente, as saias da artista levantaram-se por diversas vezes e ela teve de as segurar.

O vento depressa amainou. Como que por artes mágicas, alguns espectadores chegaram-se para junto do palco e começaram, diria que por mero instinto, a soprar, levando a que outros fizessem o mesmo.

Éolo não lhes fez a vontade: a saia nunca mais se levantou, por mais que eles soprassem.

Éolo foi um desmancha prazeres. Um seminarista que se encontrava na segunda fila e que não acreditava em deuses pagãos, ainda tentou uma intercessão divina:

-Ó Deus, in adjutórium meum inténde (vinde em meu auxílio) - mas a sorte também não lhe sorriu.


Jorge C. Chora