sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O agradecimento

                                                    
Uma cobra gigante, escapou por um triz à morte por atropelamento, porque foi puxada, uma fracção de segundo antes, para fora da estrada.

Profundamente agradecida ao seu salvador, não descansou enquanto não o recompensou.

Ofereceu-lhe, ainda que aquele que a socorreu tivesse recusado com todas as suas forças, uma bela casa, perto da sua.

Um dia, quando já o Inverno se aproximava, ao passar em frente à residência que oferecera, decidiu entrar. Bateu à porta e como ninguém respondeu, foi penetrando sem ruído e perguntou:

-Ó da casa, pode-se entrar ou já ninguém mora aqui?

Respondeu-lhe o silêncio. Serpenteando pelo lar fora foi dar a uma sala, em que o proprietário, refastelado num sofá, dormia a sono solto.

Aproximou-se sem produzir o mínimo ruído, deu um salto, enroscou-se-lhe ao pescoço e estrangulou-o.

Verificou e reverificou se a sua presa estava morta.”Morta e bem morta”, concluiu.

Circulou pela habitação, certificando-se de que não havia mais ninguém.

Ao regressar à sala e ao rever a sua obra, bateu com a ponta da sua cauda no chão e consolou-se:”Por que hei-de ir tão longe à procura de alimento, quando o tenho aqui, à mão de semear?”

Saiu cheia de alegria, antecipando os lautos repastos que passaria a ter, sem despender qualquer esforço.”Que parte comerei em primeiro? Não posso engordar muito, senão os meus amigos suspeitarão e ainda terei de repartir as refeições…”

E mais uma vez, atravessou a rua, a pensar no seu auspicioso futuro alimentar, quando o autocarro de que a tinham salvado meses antes, lhe passou por cima, desta vez, sem qualquer falha.

Jorge C. Chora


terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O tocador de didgeridoo

                                            


Sons ritmados e atraentes, soprados pelo tocador de didgeridoo abraçavam os transeuntes que paravam para o ouvir.

 Entusiasmado, girava o seu tronco como se de um dervixe se tratasse e, ao mesmo tempo, num jogo harmonioso, percutia dois pratos metálicos.

A caixa de moedas que tinha à sua frente, continuava vazia. Olhava-a como que hipnotizado, incrédulo com a avareza dos ouvintes.

Começou a cantar, quase murmurando no início:” …e eu também como, e já estou preocupado com a minha barriga…ela está vazia…os meus gases já não têm cheiro…” E os seus lamentos iam crescendo de intensidade.

A caixinha encheu-se e o artista esmerou-se ainda mais e, cheirando os espectadores, continuou:” …amanhã já poderei comer uma feijoada, como esta linda senhora,  ou camarões como aquela jovem…”

Tocou mais uns minutos, levantou-se e agradeceu:” Obrigado meu Deus por recompensares a minha arte e, já agora, por encheres a minha barriga e por permitires restabelecer o meu equilíbrio intestinal.”

Mais à frente, um acordeonista, com a caixa vazia à frente, foi interpelado pelo artista do didgeridoo,  enquanto lhe dava a primeira moeda:
-Os seus gases também não cheiram a nada?
-

Jorge C. Chora

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Intrujões

   
 Prometer muito
 e dar pouco ou nada,
 é lema de maus políticos
 e quejandos,
mais habituados,
a  tirar do que a dar,
useiros e vezeiros em receber.
São piores do que pragas de gafanhotos,
pois  essas ainda deixam vestígios:
campos pejados com milhares de cadáveres  dos da sua espécie,
tributo à sua voracidade, testemunho da sua passagem,
enquanto os primeiros os apagam,
 mais depressa do que o diabo esfrega um olho,
 negando a pés juntos terem alguma vez por aí passado,
jurando não só, que nunca por lá estiveram,
 mas que nunca, por nunca,  lá estarão!


Jorge C. Chora

domingo, 1 de dezembro de 2013

Hotel Clarabóia

O Sol acabou de se pôr. O rabirruivo assumiu o seu posto de pernoita e abrigo. Penetrou pelo espaço entre a clarabóia do prédio e o telhado. Instalou-se no rebordo interior da caixa das escadas.

O pequeno Francisco entrou e sorriu. Acabou de ver o passarinho e sossegou ao pensar:”Já está no quentinho”.

O sorriso quase se apagou ao observar melhor o pássaro. Estava na berma da saliência e ele achou que o rabirruivo corria perigo.

-Vai mais para dentro…podes cair…

O pássaro saiu do seu silêncio e respondeu-lhe:

-Não te preocupes…mesmo que caia, posso sempre voar…

-E se adormeceres?

-Bom…com a queda acordo, abro as asas e voo… -o mesmo não acontece contigo, pois não as tens e cairás…

-Mas porque não tenho asas?

-Porque não precisas  delas … não és um passarinho como eu…

-Bom, então dorme bem - e entrou para sua casa, pé ante pé, não sem que antes, pelo canto do olho, verificasse se o pequeno amigo se mantinha no mesmo sítio.

De repente, apanhou um susto, ao ver o passarinho cair. Ainda não se refizera, quando o viu dirigir-se a si, esticar o bico, beijar-lhe a testa, e dizer-lhe:

-Dorme bem, meu bom amigo.

E no mesmo patamar, Bli, a gata amarela, que saíra aproveitando a porta aberta do andar, de olhos abertos, assistiu ao voo e lamentou-se:”ainda não é desta vez que sinto no meu palato o sabor deste rabirruivo!"


Jorge C. Chora