sexta-feira, 29 de junho de 2018

MADALENA E O SANTO



 Um mal súbito e desconhecido atacou-o. Inchou e deixou de andar. Amigos e conhecidos deram-no como perdido. 

Homem recto, honesto e temente a Deus, tinha um amigo que lhe pediu que intercedesse por ele, junto ao Divino, quando estivesse na sua presença. Arqueou as sobrancelhas e esteve vai não vai para lhe recusar o pedido. Reconsiderou e acabou por assentir.

-Posso escrever um cartãozinho?

Respirou fundo, conteve-se mais uma vez…e disse que sim. Para que quereria escrever o pedido? tinha medo que se esquecesse? Inacreditável!

Durante a semana, a notícia espalhou-se: o santo aceitava pedidos para interceder junto ao Senhor! Choveram pedidos de intercessão escritos, que ele mandou colocar no saco plástico do hipermercado, destinados a ser cremados com ele! Que outra opção tinha?

A semana passou e o santo não só não morreu, como se restabeleceu na totalidade. Milagre, foi a ideia que ocorreu a muitos do seu círculo. Logo a seguir, lembraram-se dos pedidos que tinham feito. E agora? Ele estava na posse dos seus segredos, pensaram aterrorizados. Aquilo cheirava-lhes a marosca: foi uma armadilha, só pode ter sido. Agora vai contá-los.

O primeiro a fazer-lhe o pedido, roubou-lhe o saco dos cartões e movido pela curiosidade mórbida foi lê-los. Entre eles encontrava-se o de sua mulher, que pedia perdão a Deus por odiar o marido e andar com o santo, que lhe levaria a solicitação do perdão.

A situação não foi dramática pois, estava assinada como pertencendo a Madalena, que não era o seu nome.
Ainda hoje procuram, sem sucesso, identificar a Madalena que dormia e se reconfortava com o santo pela calada.

-Aquela pecadora desavergonhada! Quem diria, mulher… -exclamava, morto de curiosidade, o marido odiado.

-Valha-nos S. Pedro… - concordava a mulher.


Jorge C. Chora
29/6/18



terça-feira, 26 de junho de 2018

O MOSQUITO OU A MORTE DO B52


                                        
 Pelas vinte e uma horas, mais minuto menos minuto, um zumbido fazia-se ouvir no  quarto. Não sabia se ele vinha do lado esquerdo ou do direito, porque o barulho parecia vir ora de um, ora do outro. Não se via o autor e só achava que era de um mosquito, por  identificar o zumbido.

Um dia vi-o. Gordo, muito gordo, assemelhava-se a um B 52 da sua classe e voava aos ziguezagues.
Intrigava-me o facto dele só aparecer àquela hora e não se deixar apanhar, sempre às curvas e contracurvas, até que um dia descobri que ele vinha do lado dos bares. Vinha pesado e muito obeso, pois devia picar a seu bel-prazer, sem que o sentissem. Só podia!

Algo não batia certo. Por que motivo o mosquito não me mordia? Descobri que havia uma osga anã, que mal a luz se apagava, se empertigava junto à minha mesa de cabeceira, aguardando que o B52 se decidisse um dia a morder-me. Ela faria dessa ocasião, a sua festa da maioridade, papando-o bem papado, concedendo a si própria um acepipe real.

Ontem à noite, o mosquito surgiu vinte minutos mais tarde, executando voltas e voltinhas que terminaram num looping e numa aterragem na minha careca, confundida por certo, com um aeroporto. Foi o fim do B52. Uma palmada foi a causa da sua morte. Não sentiu a morte: estava anestesiado!

Jorge c. Chora
26/6/18

sexta-feira, 22 de junho de 2018

UPA UMBELINA!


                                
 Todos os dias, logo pela manhã, encontro-me com os meus companheiros de infortúnio. A mim dói-me a perna, a um chileno o braço e à D. Clara o ombro. Coisas da idade e azares à mistura.

Ao levantar-se, a D. Clara usou uma expressão que também eu utilizo para incentivar o esforço elevatório: upa. O seu “upa” foi no entanto diferente: upa Umbelina! foi o que a senhora disse.
Sabendo eu que a senhora se chamava Clara, perguntei-lhe a razão de ser mencionado nome Umbelina, colocando a hipótese de ela também ter esse nome.

Explicou-me a minha companheira de fisioterapia, que aliás conheço há muito tempo e é dotada de uma boa disposição a toda a prova, que Umbelina era uma amiga transmontana de sua mãe, de imenso peso e que sempre que se levantava dizia a expressão “upa Umbelina”.

D. Clara, que nasceu e viveu em Angola, acrescentou: no tempo da guerra colonial, nos arredores de Luanda, não se podia dizer upa. Era perigoso e podiam-se ter problemas com a pide. Upa era a designação do movimento que iniciou as hostilidades bélicas.

- Então a D. Umbelina viu-se aflita lá por Angola….

-Não…essa senhora nunca esteve em Angola…era conhecida da minha mãe…

-Antes assim - concluí eu - que já me via com problemas, por estar sempre a dizer a malfadada expressão, pese embora só lá tenha  estado de passagem.

Jorge C. Chora
22/6/18

quarta-feira, 20 de junho de 2018

UMA SITUAÇÃO VERGONHOSA



São muitos os que
não se importam
de se ajoelharem,
para que uma criança
lhes suba às cavalitas,
e de ficar de cócoras
para com eles conversarem.
Negar-lhes as cavalitas
e obrigá-los a acocorarem-se
no interior de uma jaula,
porque lhes foi dada
ordem de prisão,
e gabar-se disso como
 uma solução, é bárbaro
e inaudito ao nível
de uma nação, que só
agora parece querer
por fim à vergonha.

Jorge C. Chora
20/6/18


segunda-feira, 18 de junho de 2018

SÃO COMO TREVOS



Tal como as pessoas,
os trevos florescem no Verão,
sorriem de dia,
cerram os olhos à noite.  
Ao contrário dos trevos,
que só os de quatro folhas dão sorte,
quem vive sob o signo,
de três sílabas mágicas,
são os afortunados,
porque querem e ouvem a palavra
        AMO-TE,
que tem três e não quatro
sílabas encantadas,
com as quais se vive a todas as horas.


Jorge C. Chora
   18/6/18



sábado, 16 de junho de 2018

UM PERFUME DESCONHECIDO




Entrei há dias no carro, após uma visita a um familiar, e estranhei o perfume que se fazia sentir no interior da viatura.

Olhei de soslaio para a minha mulher, tentando adivinhar que aroma tinha ela escolhido.
Revi mentalmente os perfumes que ela costumava usar. Embora eu os conhecesse todos ou quase todos, não consegui identificá-lo. De uma coisa estava eu convicto:  era uma essência floral, talvez à base de rosas, mas havia algo de muito fresco, diria mesmo, selvagem.

Empenhei-me em descobrir o que era, sem lhe perguntar nada. Às tantas, ela deu pela observação disfarçada a que estava a ser sujeita.

-Queres perguntar-me alguma coisa?

-Talvez sim ou talvez não… queria saber que perfume estás a usar…

Ela disse-me o que usava e eu fiquei ainda mais intrigado, pois o que me cheirava, nada tinha a ver com o aroma que ela anunciava. Acabei por explicar-lhe, a causa da minha estranheza.
Sorriu de modo enigmático e disse-me:

-Quando chegares a casa, é possível que descubras por ti próprio.

Já em casa, sem nada lhe perguntar, mas com a curiosidade à flor da pele, após tirar o que havia no banco traseiro, encontrei uma só haste de flor que emanava um forte cheiro a rosas, mesclado com outro aroma qualquer..

Estava descoberto o segredo: um ramo de malva- rosa, cujo aroma nos embebia numa fragrância de rosas agridoces, de notas um tanto selvagens, que nos penetrava a alma e envolvia o espírito e se espalhara no interior do automóvel. Tinha sido uma oferta da minha cunhada, que por acaso eu não vira.

Jorge C. Chora
16/6/18




quarta-feira, 13 de junho de 2018

DE MÃOS DADAS


Regado e posto ao luar,
estava à janela,
quando te trouxeram
e a meu lado te colocaram.
Somos um par de manjericos,
e desde aí nunca nos separámos,
perfumamos o dia e a noite,
damos as mãos desde
o Stº António ao S. João,
oxalá ainda cá estejamos
por alturas de S. Pedro.

Jorge C. Chora
13/6/18


terça-feira, 12 de junho de 2018

UM BEIJO NO STº ANTÓNIO



Vi um beijo às cambalhotas,
enrolado como uma bola,
perguntei-lhe por que rolava assim,
respondeu-me que era para chegar,
mais depressa ao pé de mim.
 Guardei nos meus lábios
a dádiva que me deu,
e ofereci-lhe um manjerico,
acompanhado do dobro dos beijos que me ofereceu .

Jorge C. Chora
12/6/18


domingo, 10 de junho de 2018

O TREVO DE QUATRO FOLHAS


Ninguém saía de sua casa sem ser presenteado, pelo menos com um trevo de quatro folhas. Eles enchiam parte de um canteiro, mas não tinham nascido ao acaso: tinham sido seleccionados, semeados, depois transplantados e cuidados.

A sorte ou a sua falta, não dependiam do trevo de quatro folhas, racionalmente falando, mas os visitantes adoravam recebê-lo. Veio o tempo de seca e os trevos murcharam. Ao chá príncipe aconteceu o mesmo. Ambos desapareceram.

Um belo dia, os senhores que ofertavam o trevo e serviam o chá, receberam uns amigos que ao saberem do desaparecimento daqueles produtos, se mostraram tristíssimos com o facto:

-  Já estávamos a antecipar o sabor… e a prendinha.

-Estejam descansados. A lúcia-lima não foi afectada.

Divinal foi o adjectivo atribuído pelos visitantes ao aromático e delicioso chá. À saída, olharam de relance para o canteiro onde outrora tinham existido os trevos de quatro folhas.
Os donos da casa sorriram, pararam junto ao loureiro, encheram um pequeno saco com as suas folhas e ofertaram-no aos visitantes:

-Para temperarem os vossos bifinhos…

Já a sós, os anfitriões, após um longo beijo, sussurraram:

- Para temperarmos as nossas vidas…

-Agora tempero eu a tua… -murmurou-lhe a companheira.

Jorge C. Chora
10/6/2018

terça-feira, 5 de junho de 2018

REQUIEM POR UM SERVIDOR EXEMPLAR


Morreu-me um fiel servidor. Sem erro e sem tibiezas, reconheço-lhe uma grandeza invulgar, um estatuto inigualável de trabalhador. Nunca se recusou trabalhar, fosse a que horas fosse, pelo simples prazer de o fazer, sem pensar em contrapartidas. 

Foi exímio no exercício de me fornecer, em segundos e sem reclamações, a água a uma temperatura adequada ao meu chá ou ao saco de água quente. Nunca me deu quaisquer cuidados e foi como um pajem mudo, durante 44 anos.

Morreu de pé, aceso como uma tocha, cumprindo cabalmente o serviço até ao último segundo, seguindo sempre o lema “antes quebrar do que torcer”. Acabou por dar o último suspiro nos primeiros dias de Junho, não passando assim, para meu grande pesar, a época de veraneio na nossa companhia.

Que repouse em paz. Paloma, assim se chamava o servidor, era um esquentador japonês. Só podia…

Jorge C. Chora
5/6/2018

segunda-feira, 4 de junho de 2018

AS OVELHAS DO MEU JARDIM



 Uma das coisas que mais me agradam, é sentar-me no meu micro- jardim e cuidar do meu rebanho imaginário.
Tenho pendurado numa romãzeira, um espanta-espíritos de bambu que produz quando o vento sopra, um som semelhante aos chocalhos de um pequeno rebanho quando passa.

 Uma vizinha que há uns anos regressava do seu trabalho, espreitou o meu jardim e perguntou-me onde é que eu tinha as ovelhas. Apontei-lhe a fonte do som, o espanta-espíritos de bambu. Agora, mesmo que eu não esteja visível, sabe que eu lá estou, porque ouve o rebanho.

Este rebanho imaginário só tem vantagens: para além de não me comer nada no micro- jardim, de não o sujar, também não se ouvem més nem meio més e o rasto de excrementos que denunciam a passagem dos rebanhos verdadeiros.

Para completar o bucolismo da situação, nem me falta uma bengala, devido a um problema muscular temporário, que com um pedaço de boa vontade, se pode metamorfosear em cajado e consolidar a fantasia de pastor de um rebanho imaginário, sem cheiros nem balidos, que esses deixo a quem deles gosta.

Jorge C. Chora
4/6/2018