sábado, 29 de fevereiro de 2020

O RANCOR AVELUDADO



Com um olho nas galinhas e o outro nos cães, D. Camila atendeu o telefonema do dono da farmácia:
-Obrigado pela informação. Quantas máscaras chegaram? Muitas? Logo verei se são suficientes aqui para casa. Desde que cheguem para os meus bichos e para mim, tudo bem. Se não houver para o meu marido, não faz mal…ele não precisa… entenda-se com o coronavírus…

Nas traseiras da casa, o marido agradecia também o telefonema e a informação dada pelo farmacêutico:

-Se não tiver para ela tudo bem…ela não precisa…

No dia seguinte, na farmácia, a senhora era informada de que havia máscaras mais caras e outras, a um preço inferior. A escolha foi imediata:

-A melhor para ele e a mais barata para mim…

Pela tardinha apareceu o marido a comprar as máscaras.

-Levo as duas. A mais barata para mim e a outra para a chata lá de casa!

À noite, as duas máscaras mais baratas foram guardadas para os dois cães mais velhos do casal.

-Não vá o diabo tecê-las! – exclamaram em uníssono.

Jorge C. Chora
1/3/20

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

ENGANA-ME QUE EU GOSTO...



Se não quisermos
o que não temos,
evitaremos
dizer o que queremos
ou mesmo,
vir a referir que temos
o que não queremos;
porque para não querer
o que viermos a ter,
é melhor nem sequer
desejarmos ter
ou vir a ter,
o que não temos.
E já agora,
perguntamos a quem
nos quer dar a volta:
E se fosses à fava?

Jorge C. Chora
26/2/20

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

O OBELISCO


A casa foi construída à medida dos desejos dos proprietários. Moderna, térrea, bem projectada, mas sem alguns dos equipamentos sonhados, pelo facto de na época, ainda não terem descoberto a árvore das patacas.
Com o passar dos anos conseguiram materializar algo com que sonhavam: uma pequena piscina. Perdidos e achados era lá que estavam, recebiam e conviviam, quando para lá iam.

O único senão consistia na devassa a que se encontravam sujeitos por parte da vizinhança. A observação e a curiosidade nem sequer era disfarçada. Ninguém conhecia ninguém.

Ergueram um muro alto para protegerem a sua privacidade. Nas férias seguintes verificaram que havia uma espécie de obelisco, do lado de lá do muro, ultrapassando a sua altura. Intrigados procuraram saber do que se tratava. Obtiveram a resposta, só no fim das férias, ao conhecerem por mero acaso, o seu construtor:

-É uma torre, com um jogo de espelhos, que funciona como um periscópio!

Fica V. Exa a saber que deve evitar fazer xixi no seu quintal, sob pena de todo o mundo ficar a conhecer as suas partes pudendas.

Jorge C. Chora
24/2/20

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

O RATO ENCLAUSURADO


Impôs -se pela força e pelas artimanhas. Não havia luta que não tivesse ganho, rival que lhe fizesse frente, conhecido que não o temesse. Nunca se sacrificou por ninguém ou deu algo a alguém. Era o sr. Ratão. Na comunidade conquistara lugar de destaque ou melhor, era o mais importante da rataria.
Vivia num túnel, perto da entrada por onde entravam alimentos a qualquer hora. O melhor alimento, fosse qual fosse, já não descia à toca. Engordou. Fartou-se de engordar. Engordou sem parar. Quanto mais gordo estava mais despótico se tornava.

Um belo dia o sr. Ratão entrou em pânico: sentiu o cheiro a gás da desratização muito perto.
Descobriu que, mesmo que quisesse não conseguia sair. Estava tão gordo que mal se podia mexer e nem espaço tinha para tal.

-Socorro, venham ajudar-me… não consigo sair daqui! - gritou angustiado, ao sentir o cheiro a gás cada vez mais perto de si.

Tanto gritou que alguns dos ratos desprezados, procuraram puxá-lo. Não conseguiram movê-lo sequer um milímetro!

Gritou de novo por socorro, duas, três, quatro vezes…
E os ratinhos, tornaram a esforçar-se em vão. Caiam de exaustão, embora fossem os mais fortes desta comunidade faminta, já sem forças nem ânimo para puxar.

-Ajudem-me seus fracotes de uma figa! - exigia o Ratão anafado e mal-agradecido.

Pouco a pouco, os pedidos de ajuda foram diminuindo, até se deixarem de ouvir.

A morte do grande chefe abusador não foi chorada. Em contrapartida, a morte de três ratinhos jovens e subalimentados, expostos ao gás por ajudarem quem nunca os ajudou, foi copiosamente lamentada.
Ainda hoje se ouve o guinchar de ratos famintos que sucumbem ao auxiliar ratões, que entopem as saídas de emergências, quando as desgraças se abatem sobre as comunidades.

Jorge C. Chora
21/o2/20

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

A HOMENAGEM À PORQUINHA BIRI-BIRI


  
Biri-Biri era uma porquinha rosada e rica que protegera e enriquecera inúmeros amigos.  Foi por alguns deles convidada para um almoço.

Embora de início se tenha feito rogada, acabou por aceitar de bom grado o convite. Apresentaram a refeição como uma espécie de homenagem, uma forma de lhe manifestarem o apreço pelos negócios lucrativos que ela lhes proporcionou, muitos deles, diga -se a bem da verdade, à margem da lei.

Enquanto conviviam e bebiam, os anfitriões preparavam o fogo para confeccionarem a refeição propriamente dita. Música e dança a rodos, ocuparam lugar de destaque no convívio. A porquinha sentia-se entre os seus. bebeu e brindou aos amigos, a maior parte, porcos e porquinhas como ela.
Ajudou nos preparativos, tendo escolhido os trabalhos que mais sentia adequados a si: o afiar das facas, necessárias ao corte e à degustação. Enquanto este trabalho executava, ia piscando o olho a um peru que a ajudava e ia pensando: coitado do desgraçado…mal sabe ele o que lhe vai acontecer!

Com tudo a postos, o porco que com ela falava, tira-lhe das mãos a faca mais afiada e espeta-lha no pescoço. Surgiram de imediato bacias com que lhe aproveitaram o sangue, enquanto outros a enfiaram no grande espeto em que a assaram na enorme lareira, onde um fogo apropriado já crepitava.

O repasto durou toda a noite e foi regado com o vinho das regiões onde a recém-defunta lhes oferecera os melhores negócios. Grunhidos de satisfação pelo seu oportuno desaparecimento, ouviram-se em todo o espaço, acompanhados de suspiros de alívio, pois Biri-Biri andava a ser investigada e ninguém queria ser com ela conotado.

Ao amanhecer, cada um dos convivas, julgando que os outros ainda estavam de olhos semicerrados, lançou-se numa luta de apropriação das riquezas da porquinha rosada. Os ossos sem carne, ficaram insepultos e à mercê de abutres tão fedorentos como eles.

Jorge C. Chora
19/02/20

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

PASCOAL,O GALO DE OLHO DE VIDRO

                              
Mil sorrisos e cem histórias, oferece D. Clara todos os dias sim e, verdade se diga, quase não há dias não.
Acompanham-na fotografias das suas entidades mais queridas. É escusado dizer que são muitas e entre elas, a dos seus inúmeros animais de estimação: cães, galinhas e a do seu grande amigo Pascoal. Sabe-lhes o nome, conhece-lhes o feitio, narra os episódios por eles protagonizados e condói-se do seu velho amigo, o galo Pascoal.
Pascoal não tem um olho, e isso tanta falta lhe faz. Só vê metade dos seus inimigos e também metade das galinhas lá da capoeira. Numa era de competição, agravada pela sua provecta idade, podem imaginar os tormentos do velho Pascoal.
Quem a ouve, pergunta, em ar de brincadeira:

-E não lhe manda colocar um olho de vidro?

E a senhora nada diz, sorri para si e pensa:

-Goza, goza…mas mal sabes que eu já nisso pensei um cento de vezes…os amigos não se abandonam assim!

E D. Clara nada responde e continua a sorrir e a imaginar, quão belo ficaria o seu amigo Pascoal com aquele adereço pessoal.

Jorge C. Chora
12/2/2020

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A GALINHA QUE SÓ SABIA MARCHAR


Victor gostou dela logo que a viu. Cacarejava, batendo as asas ao ritmo do vento. No recinto onde se encontrava, uma marcha marcial atroou os ares. Eis que a bela galinha ganhou nova vida. Marchou decidida, de modo bélico e cadenciado, como se estivesse numa parada militar, peito e penas ao vento, quase a ouvir-se o tilintar de medalhas. A um canto do espaço, um galo vesgo aplaudia-a, sacudindo as asas e cantando para a sua pupila.
Achou graça e comprou-a.
Já em casa, o dono teve a maior das surpresas: a ave, afinal só sabia marchar. Fosse qual fosse a canção, não dançava, marchava, de modo enérgico e pomposo, fazendo soar as medalhas de fancaria.
Não desistiu da ideia de conseguir que a galinha reagisse de modo diferente às diversas músicas. Não conseguiu. Voltou a tentar por diversas vezes e o resultado foi sempre o mesmo: a galinha marchava, garbosa,de peito inchado.
Fartou-se e deu a bicha.
Há dias, viu-a, ao som de marchas marciais, integrando uma manifestação que progredia a passos cadenciados e braços estendidos em saudação ao chefe.
A esperá-la estava o seu mentor, o galo vesgo e atoleimado, que ia gritando de modo repetitivo “o chefe tem sempre razão”… entre outros dislates bajuladores da autoridade ilimitada…

Jorge C. Chora
10.2.2020

sábado, 8 de fevereiro de 2020

GUARDADO ESTÁ O BOCADO

Se meus beijos recusares,
para outra não os guardarei,
se de novo os quiseres,
de bom grado t'os darei.
Se sempre me quiseres,
nunca d’outra serei,
e dir-te-ei,
só para ti meus beijos guardei.
Oxalá nunca os recuses,
pois para outra não os guardarei,
e nunca d’outra serei.

Jorge C. Chora
8/2/20

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

NUNCA DIGAS...



Nunca digas nada ter
mesmo não tendo nada.
Estende as mãos,
acolhe as de quem de ti precisa,
oferece a tua amizade
sem regatear um afago.
Coloca as mãos em concha e deixa
que bebam e te agradeçam
com um simples obrigado.
E acima de tudo sorri,
nunca digas nada ter para dar,
estende as mãos,
oferece um sorriso…

Jorge C. Chora
6/2/20

domingo, 2 de fevereiro de 2020

O NOVO CLIENTE DE LEONAROD


                                       

Um cliente entrou a bambolear-se, muito silencioso, como quem não quer a coisa.
Pelo sim ou pelo não, antes que estivesse a ser observado, inchou o peito, caminhou fingindo descontração, mas coseu-se à parede.
O jovem Leonardo, detectou-o e exclamou:

-Tenho um cliente novo!

Levantou-se e foi ter com ele. O novo cliente, surpreso com a recepção, assustou-se, bateu as asas e fugiu porta fora.
O pombo tinha-se esquecido de trazer a carteira.

Jorge C. Chora
2/2/20