sábado, 12 de novembro de 2011

Alberto e os chapéus-de-chuva

A relação de Alberto com os chapéus-de-chuva é extraordinária. Não acreditam? Pois tenham um pouco de paciência e leiam o que vos vou contar e tirem, depois, as vossas conclusões.

É raro o dia em que ele regressa a casa com o seu chapéu. Também acontece ao leitor? Ah! Leva um velho mas ao voltar, traz um novo! Bom para si, embora mau para os outros. Isso não acontece com a nossa personagem. Ele leva um novo e fica sem ele. Como assim? Umas vezes empresta-o mas a maior parte das vezes, pura e simplesmente, quando chega ao sítio onde o deixou, alguém o levou. Mas o que aconteceu ontem deixou-o meio aturdido e descrente na humanidade. Chovia a potes e o seu chefe teve de ir para casa mais cedo:

-Ó Alberto empresta-me o seu guarda-chuva?

-Claro!

- Amanhã devolvo-o. Esteja descansado.

Hoje, antes de entrarem ao serviço, foram ambos tomar café. Alberto teve de sair antes, numa altura em que chovia com intensidade. Pediu o chapéu ao chefe e este, olhando-o bem nos olhos, disse:

-Olhe que este é de estimação. Quero-o de volta… nada de esquecimentos…

Achou o nosso homem que o chefe brincava. À hora da saída, o chefe não esteve com meias medidas:

-Ó Alberto…nada de esquecimentos…onde está o meu chapéu? – e logo de seguida abalou, trauteando uma canção, bem abrigado da chuva.

Alberto, não teve outro remédio senão dar uma corrida à loja do chinês, que ficava no quarteirão ao lado. Só havia um, por sinal bem mais caro do que o habitual, por ser único e estarem esgotados. Sem alternativa, todo a pingar, comprou-o. Ao chegar à porta, tirou o celofane que o envolvia. Ainda teve tempo de ver o dono da loja, com um molho de guarda-chuvas debaixo do braço a repor a mercadoria. “Esgotados uma ova!”exclamou para si próprio.

Cabisbaixo, abriu o guarda-chuva e afastou-se. Não caiu nem mais um pingo. Apanhou o metro e descansou um pouco. Sentiu alguém a puxar o guarda-chuva, abriu os olhos e deu de caras com o seu chefe:

-Ouve lá… ó Alberto…por acaso … não fui eu que to emprestei…

E quando Alberto saiu do metro já vinha de mãos a abanar.

Digam lá meus amigos que a relação que ele tem com esse objecto não é muito especial? E o apego que alguns têm ao que é nosso… não vos faz lembrar qualquer coisa?

Jorge C. Chora

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A vocação de Abraão

As bocas semi-abertas de espanto não podiam ser mais expressivas. A ninguém, mas a mesmo ninguém, passaria pela cabeça ver algum dia o sorriso aberto, feliz, luminoso e até contagiante do Abraão. Há anos que não sorria. Não tinha motivos para o fazer e anunciava aos quatro ventos essa desilusão. Estava em crise por não saber o que a vida lhe destinava.

-Abraão! Conta-nos o que se está a passar contigo! Qual é a novidade que te faz sorrir?

-Estou muito contente…julgo ter descoberto o que a vida me destina…o sentido profundo da minha existência…

-Conta-nos…partilha connosco, pobres mortais arredados há muito de motivos de satisfação… - imploraram os amigos.

-A causa é banal, está ao alcance de todos…é mesmo ridícula e inconfessável… - escusava-se Abraão.

-Vá, conta-nos, não nos faças a maldade de te calares…

-Sou capaz de ter descoberto a minha vocação. Andava sem rumo, ao Deus dará, e de repente…zás…fez-se luz …

E de novo as bocas dos ouvintes se abriram de espanto. A ansiedade começou a apoderar-se do grupo. Qual o segredo de Abraão?

Após uma semana inteira de insistência, conseguiram levantar uma pontinha do véu: Abraão tinha-se dedicado a praticar o bem. E mais não se disse.

Foi por mero acaso que se veio a saber que Abraão oferecera os seus préstimos a uma casa de diversão nocturna, onde ajudava as artistas a despirem-se, antes de entrarem em cena.

-Mas isso é que é o teu trabalho caritativo?

-Só vos contaram metade. Também as ajudo a vestirem-se…ah! E trabalho à borla!

Desde esse dia, acrescentaram-lhe um “ c” antes do nome e não há amigo que não queira ajudá-lo na sua missão caritativa.

Jorge C. Chora

sábado, 5 de novembro de 2011

D.Galo

Sacudiu a crista e enfureceu-se com o descaramento e a falsidade dos colegas galináceos. Começaram por lhe dizer que era velho e não tinha as mesmas necessidades do que os outros. Deu-lhes uma bicada, cacarejou forte e feio. Foi pior a emenda do que o soneto. Uniram-se todos, reduziram-lhe a ração e acabaram por expulsá-lo. O tempo era de crise, não havia para todos, tivesse paciência.

-O que vou fazer agora? – perguntou.

-Tivesses pensado nisso antes! Já viveste o suficiente. Há que dar lugar aos outros! – gritaram-lhe os que ficaram no galinheiro, incluindo alguns bem mais velhos do que ele, que lhe deviam avultados favores, sendo os que mais incitavam a turba ululante.

Cacarejou em vão o brioso e velho galo:

-Se vocês estão assim, fortes e decididos, também a mim o devem!

E não teve outra solução senão a de se afastar e definhar à vista de todos, sem o auxílio de ninguém.

-Chega-te para lá. Dá lugar aos novos. Para que nós vivamos melhor, precisamos que desapareças.

-Morre depressa velho estupor. Só o simples facto de te vermos já nos faz mal ao espírito!

Desterraram-no para um sítio longínquo, fora da vista de todos. Dia sim, dia não, era destacado um dos mais novos para o cumprimento de uma missão: verificar se o velho ainda vivia.
À mesma hora, ecoava pelos montes a mesma notícia:

-Ainda vive!

- Oh! Não é possível… - resmungavam os jovens galos.

O tempo foi passando e os chefes do galinheiro foram reduzindo os grãos atribuídos à população, pese embora as reclamações veementes dos habitantes.
As expulsões foram-se sucedendo a um ritmo alucinante e as mortes dos galos mais novos foram acontecendo em catadupa.
Esqueceram-se do velho galo até que um dia, alguém se lembrou dele e mandou averiguar o que se passava.

-Ainda vive!

-Oh! Não é possível! – admiraram-se os sobreviventes.

-Qual será o segredo? – questionaram-se, cheios de curiosidade.

Decidiram enviar uma representação, com o objectivo de obter, a bem ou a mal, a solução para os seus problemas. Primeiro que escolhessem quem faria parte da embaixada, sucederam-se as discussões, os melindres e as rejeições. As escolhas foram feitas e refeitas inúmeras vezes.

Constituída finalmente a comitiva, quando lá chegaram, depararam-se com um velho, gordo e formoso galo, imóvel, deitado numa fofa cama.

Em silêncio aguardaram que o galo lhes dirigisse a palavra. Após longas horas de respeitosa espera, aproximaram-se, pé ante pé, chamaram-no e tornaram a chamá-lo.

Tinha acabado de morrer o raio do galo velho!

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Não há pachorra!

Reparava máquinas de lavar, mas já arranjara outro tipo de máquinas. Era um faz tudo, bastava que a oportunidade surgisse. O negócio estava fraco. Na semana anterior não tinha tido qualquer chamada de assistência caseira. Para cúmulo do azar, nem na oficina entrara uma máquina. Nem uma batedeira de cozinha!

Hoje, mal entrara na oficina, desatou a receber telefonemas. Uns eram para fazer reparações domiciliárias na localidade, outras nos confins do inferno. Disposto a recuperar o prejuízo da malfadada semana, decidiu começar pelas mais longínquas e depois aproximar-se à medida que fosse despachando o trabalho.

Depois de quase duas horas de viagem por caminhos de cabras, conseguiu chegar ao primeiro local. Mostraram-lhe a máquina avariada e iniciou os preparativos para a reparação. Retirou da maleta a ferramenta de que precisava em primeiro lugar, deslocou a máquina para uma posição em que pudesse trabalhar melhor e ligou-a. Não dava sinais de vida. Andou às voltas com o eventual problema eléctrico até que verificou que pura e simplesmente não havia electricidade: estava cortada. Já nem assistiu à discussão entre o marido recém-chegado e a esposa.

-Não há pachorra! – exclamou ao retirar-se.

Seguiu para a outra localidade, ainda mais inacessível do que a anterior. Quando lá chegou, antes de iniciar qualquer manobra, verificou se havia luz. Havia corrente mas a água não chegava à máquina. A torneira de passagem estava fechada. A senhora fechara-a e esquecera-se de a abrir. Perdera tempo e o que restava da sua paciência.

-Não há pachorra! – repetiu, profundamente aborrecido.

Regressou à oficina. Durante o percurso, irado, ia proferindo palavrões, tantos quantos nunca imaginara dizer até aquele momento da sua vida. Chegado ao destino, quando ia começar a trabalhar, telefona-lhe a mulher, pedindo-lhe, com urgência, que desse um pulo a casa pois a máquina de lavar não funcionava.

-Ó mulher, vê lá se não desligaste a luz por acaso!

-Não, não desliguei…

-E tens a água aberta?

-Sim.

A contragosto foi a casa. A primeira coisa em que reparou, ao pé do telefone, foi na conta da luz. Não estava paga. Havia outro envelope, ainda fechado, ao lado. Teve um pressentimento mau e abriu-a: era um aviso do corte da luz. Furioso, trovejou:

-Ó mulher, não me digas que não pagaste a luz! É sempre a mesma coisa! Era mesmo o que hoje me faltava!

-Então não foste tu que a ficaste de pagar? Tu não me digas… não há pachorra! É que não há mesmo pachorra…

Jorge C. Chora