terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O comprimido


Uma explosão de alegria alastrou pelo laboratório. O comprimido roxo ganhara o prémio do grémio industrial. Naquela semana era a terceira instituição a atribuir-lhe distinções. Os elogios, por parte de alguns empresários, não abrandavam desde que o medicamento fora descoberto. A produção triplicara, os custos tinham sido reduzidos e os lucros tinham aumentado em flecha.

 O medicamento surgira por mero acaso e era um inibidor da produção de urina e de fezes pelo período de oito a dez horas diárias. Alguns empresários tornaram a toma do medicamento obrigatória para os trabalhadores.

Um coro de protestos surgiu por parte do mundo do trabalho. As associações humanitárias juntaram-se às reclamações. As investigações médicas alertaram para o perigo que o medicamento podia representar.
Algumas associações de empresários fizeram orelhas moucas às advertências e teceram considerações elogiosas e apresentavam-no como um avanço para a melhoria da produtividade.

As doenças do foro urológico e intestinal aumentaram de forma aterradora. O coordenador do projecto que estivera na base da descoberta, era convidado para os foros económicos para defender a inexistência de efeitos colaterais. Primeiro recusou-se, mas depois sucumbiu ao peso das compensações monetárias.
No decurso de vários investimentos falhados, o laboratório fechou. O cientista, com o decurso do tempo, foi obrigado a procurar emprego. Contrariamente ao que pensara, não foi fácil consegui-lo. Quando o obteve, no primeiro dia de trabalho, antes de entrar, um segurança, enorme,  chamou-o e apontou-lhe dois comprimidos roxos:

-Faça o favor de tomá-los.

-Dois? -  surpreendeu-se o cientista.

-Ordens da administração… aqui a produtividade é dupla… -alegou, de sobrolho arregalado, o segurança.

Jorge C. Chora

domingo, 9 de dezembro de 2012

A riqueza numa receita


Três amigos discutiam, de modo acalorado, uma forma de enriquecerem. Não conseguiram chegar a nenhuma conclusão. Quando se preparavam para sair, um homem de óculos, de aros redondos, muito magro, calvo, com um sorriso bondoso, disse-lhes:

-Cheguei há bocado e apercebi-me de que discutiam um projecto que vos tornasse ricos…

-Sim…e depois… - repeliram-no, aborrecidos com a intromissão.

Gostaria de vos ajudar. Sei que não pediram conselhos, e se os quisessem tinham-nos pedido…

-E então!? – questionaram, irritados, os três.

-Peço-vos desculpa…têm razão…foi uma interrupção indesculpável… -e retirou-se, saindo da sala.

Pouco depois, os três chegaram à conclusão de que o podiam ouvir e correram atrás dele.

-Quem pede agora desculpa somos nós. Gostávamos de o ouvir, se ainda quiser dar-nos um conselho….

-O que tenho a dizer-vos é muito breve. Vou dar-vos a morada de uma pessoa que vos auxiliará. Foi ela que me ajudou a enriquecer.

No dia seguinte, os três tocaram ao portão da quinta que lhes fora indicada e esperaram algum tempo. Ele abriu-se automaticamente. Um enorme cão estava sentado, muito calmo, no início do caminho. Indecisos, os visitantes ficaram do lado de fora. O cão levantou-se, abanou o rabo e foi ter com eles. Colocou-se-lhes de lado e iniciou, devagar, a marcha para o interior. Seguiram até um casarão onde um ancião, muito pequeno e de cabelos brancos os esperava.

Foram conduzidos à presença de uma senhora ainda mais idosa. Ela sorriu-lhes e ofereceu a face para que eles a beijassem. O visitante mais novo deixou-se ficar para trás e saiu sem a beijar. O cão acompanhou-o até ao portão.

D. Isaura convidou os que ficaram a segui-la até à cozinha. Em cima da mesa estavam três envelopes.

-Escolham dois e abram-nos… -convidou a dona da casa.

Abertos os envelopes, foram autorizados a ler as folhas manuscritas que continham.

-Receitas culinárias? O que é que isto tem a ver com…

-Com o vosso desejo de enriquecer? Tudo! O senhor que vos recomendou, enriqueceu com uma única receita – respondeu a senhora idosa.
Entreolharam-se. A dúvida assaltou-os. Estaria ela boa de cabeça? Estaria a brincar com eles?

-Claro que a receita é só um bom ponto de partida. O resto é trabalho… e mais aquilo que for preciso… - disse, misteriosamente a senhora.

Um dos amigos desatou à gargalhada:

-A riqueza numa receita! Era bom era!

Os dois desistentes partiram sem se despedirem do amigo.
Muitos Verões depois, num dia de muito calor, estes dois homens compareceram a uma entrevista de emprego. Na sala onde estavam, havia um quadro em lugar de destaque. Aproximaram-se, curiosos, para verem mais de perto do que se tratava. O entrevistador ao vê-los à volta do quadro, informou-os:

-Foi essa receita que deu origem à fortuna do dono desta empresa….

Mal o funcionário introduziu os nomes dos dois amigos no computador, surgiu-lhe um aviso que lhe ordenava a entrega de dois envelopes aos entrevistados. Apressou-se a ir buscá-los e a dar-lhes.

Quando os dois amigos as abriram, encontraram duas receitas culinárias e algum dinheiro, juntamente com um pequeno bilhete que dizia:” Nunca é tarde para concretizar o sonho de ser rico. Boa sorte”. Os bilhetes estavam assinados: “O amigo que ficou com a outra receita.”

-E ele a dar-lhe, de novo, com a riqueza numa receita… ! - exclamaram, furiosos, em uníssono.

Jorge C. Chora


segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A fada dos pequenos poderes


 Sorriam as fadas com os poderes que a sua rainha lhes atribuíra. Doravante seriam fadas de plenos poderes. A cerimónia fora linda e as varinhas de condão que tinham recebido eram um verdadeiro encanto. Só uma pequena fada permanecia no fundo da sala, muito quieta e calada. Ninguém dera por ela, muito encolhida e quase escondida.

 Quando a rainha se apercebeu que se esquecera de lhe conceder poderes, era tarde: Já distribuíra todos os que eram importantes. Deu voltas e mais voltas à sua imaginação, tentando a todo o custo recordar-se de algum que tivesse sobrado. Foi tanta a aflição que uma dor de barriga muito incómoda, tomou conta de si. Eis senão quando lhe surgiu a ideia de conceder à pequena fada o poder de curar dores de barriga a quem as tivesse, e de as dar a quem as merecesse.

Agradeceu-lhe a pequena fada a preocupação tida e, de imediato, sem pedir licença, usou os poderes concedidos e libertou a rainha das dores de barriga que a afligiam. A acção agradou de sobremaneira à rainha, até porque foi praticada de modo instintivo e sem procurar qualquer retribuição, pois a fadinha não disse ai nem ui, limitando-se a sair da sala aos pulinhos.

Lá fora, enquanto caminhava pelo meio das outras fadas, escutou risinhos insistentes e viu algumas delas agarrarem-se às barrigas enquanto diziam:

-Ó fadinha dos pequenos poderes…tira-nos estas dores horrorosas por favor…

Ela sorriu e continuou o seu caminho, sendo alvo de chacota por parte de mais algumas das colegas, de tal forma que a fadinha decidiu dar-lhes uma lição. Estendeu a sua varinha e concedeu-lhes o desejo contrário ao que tinham expresso: deu-lhes uma dor de barriga tão violenta, que as outras fadas tiveram de apertar o nariz, tal o cheiro pestilento exalado por elas, que nem sequer tiveram tempo de correr para a casa de banho.

-Agora que tiveram umas dores de barriga a sério, é com todo o prazer que vos vou satisfazer o vosso pedido e aliviar-vos do incómodo. Logo a seguir, empunha a sua varinha e faz desaparecer as horrorosas dores.

Malcheirosas e envergonhadas, pediram desculpa à pequena fada e ofereceram-se para lhe atribuírem alguns dos seus excessivos poderes.

-Muito obrigada colegas, os pequenos poderes que tenho bastam-me e sobram-me…

-Ninguém tem dúvidas disso…-concluíram as fadas, ansiosas por um bom banho.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

S. Analógico

Olham com cara de caso para o seu televisor. Não querem acreditar no que lhes está a acontecer. Levantam-se e abanam-no. Conversam um pouco com ele. De início com palavras meigas, porque a um velho e fiel amigo podem perdoar-se algumas falhas, principalmente devido ao facto de nunca, mas nunca, até à data, ter falhado.

Sentam-se à mesa de novo e de pescoço esticado, fitam-no lá no alto, alcandorado no suporte. Parece algo pré-histórico: saem-lhe fios por todo o lado, ligados a uma caixa preta, cheia de bananas multicolores que a ela se ligam, por meio de outro aparelhómetro. A encimar a televisão existe uma espécie de escaravelho unicórnio e luminoso, um dispositivo electrónico, do qual partem duas grandes antenas, assemelhando-se a um búfalo a quem alumiam o caminho. Resolvem esperar por ele, dar-lhe mais tempo a ver se recupera. Nada, por mais que se espere, ele não tuge nem muge. Desperta quando lhe dá na real gana, sem dar cavaco a ninguém: está em autogestão.

Toca a retirá-lo do suporte e a carregá-lo. Pesa que se farta e o tamanho torna-o difícil de acomodar. Vencidas as enormes escadas sem elevador, é transportado até ao técnico, bem mais velho do que o televisor.

-Homem …que traquitana me traz aí! Isso nem tem HDMI !

Começa a linguagem da supremacia tecnológica.

-O amigo não vê que isso ainda tem uma antena das antigas e com isso nada feito!

Encolhe-se o dono e explica-lhe que para além daquela já tem outra, com lanterna e tudo…e que o aparelho até funciona mas, quando quer e lhe apetece deixa de ter som e imagem…

Afadiga-se o técnico em testes e a sentença é lavrada:

-O aparelho está bom. A recepção é que é má. Isto já não se usa…isto é do tempo do analógico…nem tem HDMI !

Volta a carregá-la e a subir a pé com o trambolho às costas, a montá-la no mesmo sítio, a maldizer a quantidade de dinheiro gasto em adaptadores, antenas e caixas descodificadoras.

No fim de tudo pronto, liga-a, vêem durante uns minutos e quando já estão com a atenção presa, deixa de haver som e imagem. Em desespero de causa interroga a mulher:

-O que é que eu posso fazer mais?

-Acende um vela a S. Analógico…pode ser que nos valha…

Jorge C. Chora

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

O bojudo

As recomendações apresentadas para ocupar a vaga laboral eram irrecusáveis: sem estudos, sem experiência, sem opinião, com a garantia que diz a tudo que sim ou que não, ao sabor do que o chefe resolve dizer ou desdizer.

Admitido por urgente conveniência de serviço, colocaram-no na antecâmara de um chefe. Está à porta e sorri, abana a cabeça e faz que sim. É um sim-sim.

Passaram-se os anos e tornou-se bojudo, desdentado, fedorento, por desleixo e excesso de boa vida e incapacidade para tratar de si. Está agora colocado à porta da sala de leitura, logo à entrada de quem entra, de língua de fora, para que nela lhe passem os dedos e desfolhem as páginas dos jornais.

Sobreviveu a todas as remodelações e recentemente foi colocado num serviço, cuja utilidade se desconhece, de boca escancarada, humedecendo os sapatos de quem os quer limpos antes de entrar.

Para todos os efeitos é director e sempre ganhou como tal. É, foi e será sempre indispensável. Para os devidos efeitos já foram nomeados três familiares como seus ajudantes. Nenhum emigrará.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

O milagre do canhoto que virou dextro

Quando se benzeu pela primeira vez com a mão esquerda, despertou a atenção das pessoas que o rodeavam. À segunda vez aguçou a curiosidade, e à terceira, muitas delas franziram o nariz demonstrando o seu desagrado.

À saída da igreja, uma idosa mais afoita aproximou-se do senhor e perguntou-lhe, directamente, a razão do seu estranho acto.

-Olhe minha senhora…benzo-me com a esquerda porque há duas semanas fiz um pedido ao Senhor e ele não me atendeu ainda…

-E ?... – questionou a senhora, esperando uma justificação mais plausível.

O homem não se fez rogado:

-Assim mostro-Lhe o meu desagrado e pode ser que atraia a Sua atenção…

-Mas ao menos o senhor é um homem de fé?

-Não…não…longe disso…-confessou o canhoto.

-Mas então, como é que pretende que Ele o atenda?

-Atraindo a atenção para mim com o meu gesto… - explicou já aborrecido.

-A minha atenção teve-a…a do Senhor é duvidosa… - e, acto contínuo, rapa da sua bengala e ferra-lhe uma tal bengalada no braço esquerdo que, no dia seguinte, o sinal da cruz foi executado na perfeição com a mão direita.

A velha senhora, vigilante, exclama em êxtase:

-“ Deo Gratias”…um milagre…o canhoto virou dextro!

Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Os parceiros

Entrou apressado na viatura e arrancou quase de imediato. Virou à esquerda e logo a seguir à direita, sem parar no stop. Acordou cheio de dores no hospital.

Depois de tratado foi internado num quarto, onde estava outro doente. Fitou o seu parceiro e cruzaram por breves instantes o olhar. Logo a seguir, o que já ocupava o quarto olhou para o tecto e assim ficou.

Não gostou o recém-chegado do mutismo a que se remeteu o parceiro. Reparou bem na figura. Tinha uma barba aparada de modo irrepreensível assim como o cabelo. No bolso do pijama tinha a letra “C” bordada e uma pequena cercadura composta de espigas que lhe pareciam representar espigas de trigo. No dedo anelar da mão esquerda podia ver-se um anel de curso cuja pedra não identificou. Um convencido, pensou. Era definitivamente um, sem a menor dúvida, e a primeira letra bordada no pijama, “C”, denunciava, com toda a certeza, o carácter do homem que ali estava: Um convencido.

À medida que as horas passavam, prometeu a si próprio não se rebaixar dirigindo a palavra a quem o ignorava daquele modo. Concentrou a sua atenção na janela do quarto, ao lado da cama do” Convencido”. Era preciso ter azar. Se ao menos ela estivesse ao seu lado podia distrair-se, ver o movimento exterior, sentar-se na cama e dar fé do que se ia passando lá fora…

À hora da visita entraram no quarto uma sorridente senhora, acompanhada de uma belíssima e não menos risonha adolescente. O companheiro de quarto levantou-se de um pulo, beijou a mulher e abraçou a filha. Começaram os três a gesticular em silêncio, iniciando uma conversa animada mas sem proferirem um só som.

Ao fim de algum tempo a adolescente dirigiu-se ao companheiro do pai e disse:

-O meus pais são surdos-mudos. Ele chama-se Carlos e tinha receio de o estar a incomodar. Ele tem pena de que desta janela, que só dá para um saguão, nada se veja, porque caso se visse algo, tinha-o convidado a sentar-se na sua cama e a partilhar o movimento e a paisagem.

Nesse preciso momento, a mãe da rapariga oferece-lhe uma fatia de bolo com um sorriso encantador e o companheiro pede-lhe, por gestos, que ele aceite.

Quarenta anos depois, é rara a semana em que não se encontram para jogarem uma partida de xadrez.

Jorge C. Chora

sábado, 20 de outubro de 2012

Leitura às avessas

Com uma pontualidade invejável, a empregada chegava à praia, com duas gaiatas pela mão. Escolhia mais ou menos o mesmo sítio de sempre e espetava o frondoso chapéu -de -sol na areia, estendia as toalhas, colocava a cesta de verga com os lanches das pequenas, à sombra. Ajudava-as a despirem-se, dobrava-lhes a roupa, e só depois de as ver instaladas se acomodava.

Debitava, de seguida, o responso da segurança sobre o molhar dos pés e dos banhos de mar, acentuando o perigo mortal daquela última actividade, até porque ela não sabia nadar e não podia socorrê-las.

Cumprida a primeira parte do programa, retirava uma revista feminina do seu saco, suspirava, colocava-a à sua frente, muitas vezes de cabeça para baixo, e ficava assim, muda e queda durante horas.

-Olha que tens a revista ao contrário… -advertiam-na as crianças, que de parvas nada tinham e já soletravam.

- E eu não sei? É que assim levo mais tempo a ler e ocupo o tempo…- respondia, enxofrada.

Pelo sim, pelo não, as gaiatas fizeram-lhe uma bola na parte de cima da revista, e sempre que a Laurinda pegava nela ao contrário, diziam em uníssono:
- A bola para cima…
-E eu não sei? – e bufava de enjoo com a observação das patetas das miúdas.
A meio da manhã chegava um magala que se colocava estrategicamente uns metros à sua frente e ela fingia não ver. Só nessa altura é que a sua disposição melhorava a olhos vistos.

No pequeno rádio do soldadinho, soava a recente música de Nilton César”A namorada que sonhei” e a frase”…Receba as flores que lhe dou…” que ele acompanhava com o envio gestual de pequenos beijos repenicados.

Laurinda fazia cara feia mas ia retribuindo os sorrisos, às escondidas, com destinatário certo.

-Para te casares Laurinda, tens de aprender a ler... - e elas, terríveis, que não perdiam pitada, desatavam numa correria, bem a tempo de não ouvirem o chorrilho de asneiras proferidas pela Laurinda.

Num verão, as pequenas patroas, foram vestidas de branco ao casamento de Laurinda e do soldadinho. Quando o padre pediu que Laurinda lesse um pequeno texto, ela virou o missal de pernas para o ar, parou e ficou a olhar para as suas pequenas convidadas. As meninas sentiram o sangue gelar-lhes. Segundos depois a noiva colocou o livro de modo correcto, leu, e só se enganou em duas palavras.

-A malandra da Laurinda! – resmungaram, aliviadas, as meninas..


Jorge C. Chora

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O dedo de pau

Teve um acidente de carro e, por azar, ia tão agarrada ao cinto que acabou por ficar com o dedo polegar decepado. Guardou o pedaço religiosamente. A fé na reimplantação não a deixou desanimar. Quando chegou ao hospital apresentou duas coisas aos médicos: Um saco com a parte da polegar recolhida e um grande sorriso de esperança.

Examinado o corte e a parte separada do dedo, concluíram os profissionais que era impossível reimplantá-lo. Foi o princípio de um desgosto profundo, traumático e de uma revolta sem tamanho.

Regressada à sua terra e ao quotidiano, atrás do balcão da sua taberna, Beatriz olhava amiúde para o seu polegar incompleto. Tinha saudades da parte em falta. Subia-lhe um rubor às faces, um meio caminho entre uma apoplexia e um furor sem tamanho, pela incapacidade de aproveitarem o que guardara tão esperançosamente. Vinha-lhe à memória o momento, o maldito momento, em que o libelo, sem apelo nem agravo, a tinha sentenciado a ficar sem metade do seu querido, amado e imprescindível dedo.

No intervalo dos copos que aviava aos seus clientes, queixava-se amargamente da sua sorte, do membro perdido e que jamais poderia ser recuperado. Um desgosto inultrapassável.

Não havia vivalma, habitante local ou forasteiro, que não estivesse a par da sua grande queixa. Um belo dia decidiu passar ao ataque: Escrever ao ministro a pedir-lhe um dedo, nem que fosse um de pau.

Auscultou todo o mundo, procurando quem lhe escrevesse a dita carta, mas não conseguiu quem o fizesse. Um dia morreu. Morreu sem realizar o seu desejo: o de ter um dedo de pau.

Na vila ninguém a esqueceu e a vereação até lhe botou o nome numa rua. Tinha,certamente, qualidades humanas que aqui não se versaram e que a tornaram digna de memória.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

As bruxas de Benfica

Entrou e segurou a porta, pois ouviu atrás de si um tiquetaque de saltos altos. Não se enganou. Uma dama de nariz empinado e passo curto, de pequena estatura, sem sequer olhar para si, penetrou na igreja sem o cumprimentar e muito menos lhe agradecer, seguindo em frente, saracoteando-se.

Ainda com dificuldade em encaixar a situação, viu entrar de rajada mais duas senhoras que se comportaram do mesmíssimo modo. Perdeu a paciência e enquanto fechava a porta com uma certa força disse:

-É de mais!

Nesse momento elas gritaram:

-Ai as nossas caudas…que dor…

-Mil perdões…não imaginava….- balbuciou – e olhava a ver se via as caudas.

- Cego é quem não quer ver…toma que é para aprenderes… - e enquanto isto diziam, sopravam labaredas dirigidas aos seus pés.

Saltitando, ora para a esquerda ora para a direita, o infeliz conseguiu evitar ser assado. Cansado de tanto se esquivar, quase a sucumbir, ouviu um pequeno estrondo por cima da sua cabeça e viu três vassouras a voar. Agarrou-se a uma delas e conseguiu sair do alcance das malvadas.

Nesse preciso momento, o padre deu início à santa missa, benzendo-se e fazendo o sinal da cruz. Acto contínuo, apagaram-se as chamas e quando os fiéis disseram ámen, logo as três damas regressaram à sua real forma e natureza. Transformaram-se em três pequenas cabras que reclamavam:

- meeée´…méeeeee´

À porta, um pastor com um enorme cajado e um só corno, vermelho e retorcido, repreendeu-as com severidade:

-Quantas vezes é preciso dizer-vos que o vosso lugar não é na igreja! Não há palha e os bodes estão cá fora!

-Méee…mééé… -reclamaram furiosas, descendo as escadarias numa correria, batendo os cascos com uma tal violência, que as faíscas produzidas dariam para alumiar a noite mais negra.

Valha-nos Nossa Senhora do Amparo!

Jorge C. Chora

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

As cadeirinhas do Malaquias

Encomendar cadeiras ao Malaquias era uma moda, um dever, um “must”. Ninguém percebia bem a razão do referido gosto. Havia outros artesãos a fazerem-no, aparentemente, tão bem como ele, mas sem qualquer êxito.

Barnabé, matutando no assunto e resolvido a encontrar as razões do sucesso inegável dos produtos do Malaquias, teve de desistir do intento devido ao fracasso total da iniciativa. Ninguém lhe disse rigorosamente nada sobre o assunto. Bastava uma pequena palavra para que a conversa fosse de imediato evitada, desviada, cortada.

Passaram-se anos e quando o assunto lhe deixara de interessar, ouviu dois cavalheiros a conversar:

-Não encontra cadeirinhas como as do Malaquias… - considerou João Maria.

-Mas o que é que elas têm de tão especial….são iguais às outras… -respondeu-lhe Santiago d’Ilhéus.

-Iguais! Iguais? Como é possível dizer isso? – interrogou-o, afogueado – como se tivesse ouvido o maior disparate deste mundo e do outro.

-Explica-me, por favor, qual a diferença, para que eu não torne a cometer essa ofensa…

E o amigo tornava à carga:

-Mas tu alguma vez te sentaste nas cadeirinhas? – insistiu João Maria.

-De facto não… - confessou Santiago d’ Ilhéus.

-Ah! Voici! …está explicada a tua ignorância…Acabei de comprar uma e vou fazer-te o favor de te deixar sentar nela… - disparou João Maria.

Deu dois passos, abriu a bagageira do seu enorme BMW, retirou a cadeirinha e convidou o amigo a sentar-se.

-Que tal?

O amigo acomodou-se, olhou-o e nada disse.

-Então…diz-me com sinceridade… o que sentes?
Muito a custo, confessou:

-Bem… não sinto grande diferença…

-Não acredito! – e esbugalhava os olhos, surpreso com a insensibilidade do amigo.

Santiago, envergonhado por não conseguir sentir a diferença, concentrou-se na situação. Mexeu-se, levantou-se, tornou a sentar-se e pouco depois sorriu timidamente.

-Sentiu? Mas sentiu mesmo a diferença? – questionou,ansioso, o dono da cadeirinha.

-Acho que sim… talvez este altinho no meio do assento da cadeira… - arriscou Santiago d ’Ilhéus.

-É ou não é uma experiência inigualável…diferente…em suma…uma maravilha?

Barnabé, já na posse do segredo das cadeirinhas, afastou-se com uma terrível dilema:"Compro ou não compro uma cadeirinha?"

Jorge C. Chora











terça-feira, 11 de setembro de 2012

O gato das botas cardadas

Era um vez um menino pobre chamado Portugal. Calhou-lhe por herança um gato, enquanto os seus irmãos foram agraciados com fábricas e diversas riquezas. Portugal, entristecido, queixou-se amargamente da sua sorte. Os irmãos e os seus amigos logo criticaram a atitude de descrença, comentando que a sorte, cada um é que a fazia e a tinha na sua mão.

-Acredito no que me dizem, mas não me importava de trocar de posição convosco… - murmurou a medo o pequeno Portugal.

Os conselheiros dos irmãos, em amena cavaqueira, fizeram-no recordar-se da história do gato das botas que enriquecera o filho do moleiro e lhe trouxera uma enorme felicidade.

Animado com a lembrança, Portugal criou um a nova alma quando o gato lhe fez três pedidos, tal como o da história infantil: umas botas, mas estas tinham de ser cardadas; um barrete em vez de um chapéu; um saco de pano reforçado.

Qual não foi o espanto de Portugal, quando o gato lhe surgiu com uma mão cheia de coelhos, caçados nas suas próprias terras e lhe pediu, em troca, um saco cheio de dinheiro.

-Mas eu não te pedi coelhos e muito menos que os caçasses nas minhas propriedades…

-Eu melhor do que tu, sei das tuas necessidades. Vai lá buscar o que me deves, enche-me o saco e coloca-o neste carrinho de mão…-replica o gato.

A custo e a contragosto o pedido foi satisfeito. Passado um tempo o gato propõe que o seu amo vá banhar-se ao mar. Quando este está repimpado e feliz a chapinhar e a mergulhar, o felino surge-lhe com um magote de estrangeiros que o convencem de que está a afogar-se e necessita, com a maior urgência, de uma frota de submarinos para o salvar.

Desesperado com as dívidas que estava a acumular, o dono queixa-se ao gato da aflição em que se encontrava.

-Não te aflijas. Recorda-te que tens muitos amigos desejosos de te emprestarem dinheiro e de te socorrerem em tempo recorde. Eu próprio vou tratar disso. Vai enchendo esses sacos que aí estão, para garantir os primeiros pagamentos e deita-os aí no carro que eu levo-o ao sítio certo.

Executado o carregamento, o gato tira o barrete da sua cabeça e dá-o ao dono, dizendo:

-Ofereço-te. Bem o mereces. Ele não me fica bem e não o posso usar enquanto intermediário entre ti e os teus credores!

E desde aí Portugal enfia e usa o barrete, que ameaça tornar-se um elemento indispensável da sua farda.

Ainda hoje, o malandro do gato, com um ronronar doce, exigiu mais sacos, tantos quantos a voracidade o permite.

Jorge C. Chora

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Adeus doutores

Vão-se os letrados,
ficam os velhos e os analfabetos,
evaporam-se as esperanças dos
que não tiveram infância e deram
o tudo por tudo para educarem os netos,
sonhando com o dia em que os veriam doutores.

No país,hoje, nem as espinhas sobram, é preciso sair,
temem os anciãos pelo que resta à sua verde e doce prole,
chupar o que não presta, comer o que lhes faz mal,
voltar ao tempo da sardinha para três,
dar razão àqueles que nada fizeram pelos seus,
que juraram para sua comodidade, que estudar era luxo vão e o futuro
estava na enxada e tudo o resto era vaidade, e para mal dos nossos pecados,
anseiam pelo dia do regresso à foice e à enxada, para do alto da sua putrefacção,
vociferarem sem parar:
-Adeus doutores que não fazem cá falta!
E mais uma vez a noite cai, sobre o nosso triste Portugal.

Jorge C. Chora


domingo, 19 de agosto de 2012

A contra-ordem


Quando os trabalhadores lhe surgiam com multas de trânsito, o homem enfurecia-se:

-As regras são para se cumprirem! - e o vozeirão enfurecido ecoava pela empresa.

O resto do dia, passava-o a remoer o valor das coimas, o desperdício de dinheiro e a inconsciência dos condutores. Mandava descontá-las nos salários dos trabalhadores até ao último cêntimo e, quando se tratava dos filhos, cortava, nas mesadas, as verbas pagas.

Recusava-se a ouvir as queixas de que havia excesso de zelo, de que iam só a meia dúzia de quilómetros a mais, numa recta sem movimento. O industrial torcia o nariz. Pareciam-lhe difíceis, inacreditáveis tais factos.

Um belo dia, ao volante da sua viatura foi mandado parar e autuado na fatídica recta, exactamente como lhe tinha vindo a ser contado pelos outros. Que havia um pequeno excesso, havia. Nada a dizer. Não sorriu, não reclamou, limitou-se a pagar. Regressou à empresa.

Sentado à sua secretária, agarrou no telefone e ordenou a vinda de dois camiões cheios de pedras e mandou despejá-las na clareira onde eles se escondiam. O terreno era seu e acabava-se o esconderijo.

Foram santos os dias que se seguiram. Uma semana depois, ao regressar a casa, na mesma recta, cruzou-se com dois carros que vinham a uma velocidade tal que o empresário ficou sem saber de que marca eram as viaturas.

Regressou à empresa, tornou a pedir a vinda de dois camiões, desta vez, para levantarem as pedras. Mandou ainda instalar no esconderijo, uma mesa e bancos de pedra para que os profissionais tivessem mais condições de trabalho. Pensou melhor e ordenou que a mesa e os bancos fossem amovíveis, não fosse dar-se o caso de querer controlar a situação de modo rápido e estar impedido de o fazer.

Jorge c. Chora

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A prova do sacristão

Na aldeia pouco havia que fazer após o trabalho. Os homens reuniam-se na taberna, pagavam e bebiam rodadas. Todos participavam e, por isso, eram inúmeros os copos que bebiam, quer lhes apetecesse ou não, pois ficavam mal vistos e arredados do convívio aqueles que se mostrassem renitentes.

Um dia, o sacristão, que fazia parte da roda e estava farto de beber, resolveu moderar o consumo dos discípulos de Baco. Propôs que só podiam continuar a beber os que estivessem sóbrios depois do 4º ou 5º copo de vinho.

- Estamos todos bem! –berraram alguns.

-Veremos. Quem conseguir subir ao púlpito da igreja velha, sem se apoiar, estará em condições de beber mais do que quatro copos … - sugeriu o sacristão.

Em silêncio, dirigiram-se ao templo. Em fila indiana, alumiados pelos isqueiros, esperaram a respectiva vez de subirem. Os degraus de acesso ao púlpito eram sete, grandes e irregulares, enroscados a uma das colunas da igreja, sem guarda nem corrimão, e muito distantes das paredes.

Metade dos presentes apoiou-se no pilar e foram impedidos de prosseguir a prova. A outra metade tombou da escada no quinto ou no sexto degrau.

-Estamos conversados… - concluiu o sacristão.

-Mas como diabo te lembraste disto? - interrogaram, furiosos, os excluídos.

-Isso agora… é segredo… -defendeu-se o sacristão.

-Mau…ou te confessas ou a prova fica sem efeito! – reclamaram os presentes.

-Porque é que, quer eu quer o senhor padre, andamos, de vez em quando, de braço ao peito?

Jorge C. Chora

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Desenrascados


Ana e Isabel, em Nova Iorque, entraram num restaurante e escolheram a refeição num extenso e complicado menu, após um jogo de empurra do escolhe agora tu que eu já escolhi ontem, que se vinha a desenrolar há vários dias.

Quando a refeição foi servida, Isabel notou que lhe faltava um guardanapo e era preciso pedi-lo.

-Olha lá Ana, como se diz guardanapo em inglês?

-Por acaso sei, mas… estás sempre atida a mim e é altura de te desenrascares…

Dito e feito. O gesto é tudo. Isabel levou as mãos à altura da boca e imitou o acto de limpar os lábios.

-Napkin?- ajudou o empregado.

-O.K- transmitiu Isabel com o polegar levantado.

Nesse momento, na mesa ao lado, um senhor de certa idade, sem dizer uma única palavra, apontou para a lista das comidas, batendo os braços arqueados, simulando um bater de asas, enquanto cacarejava.

-Chicken? – ajudou o empregado.

Ana e Isabel, de sobrancelhas franzidas perante a cena, tiveram como que uma revelação e perguntaram ao idoso:

-Português?

-Sim minhas senhoras!- retorquiu o homem que cacarejava, levantando-se respeitosamente.

-Ora abóboras!-exclamou o empregado.- Podíamos todos ter falado na nossa língua!

Jorge C. Chora

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A gata costureira

De dois em dois minutos a gata salta-lhe para o colo e ronrona. É ronha, pura ronha, pois ela sabe que vai ser corrida dali para fora. Tenta dar-lhe a volta a ver se a deixam ficar, se o dono amolece com as suas demonstrações de afecto. Sabe-a toda, mas mesmo toda!

Neste momento ela acabou de lhe saltar, pela sexta vez, para o colo. Antes que a ponham a mexer, tira a unhas e agarra-se às pernas, cravando-as nas calças e, de seguida, puxa. Mais um rasgão nas calças de ganga. Levanta-se aborrecido. O telefone toca e ele acaba por ter de sair sem tempo para se trocar.

Tem de se deslocar ao café onde o esperam uns amigos e respectivos filhos. Ao chegar os jovens olham-no com atenção. Miram-no e remiram-no e acabam por lhe perguntar onde comprou as calças. Ri-se. Eles insistem. Ele acaba por responder:

-Como estas não há nenhumas. Foram arranjadas por uma gata costureira.

Perante o espanto demonstrado, teve de explicar em detalhe o que queria dizer. Quando finalmente se libertou da curiosidade juvenil e se preparava para dar atenção aos adultos, ouviu um chorrilho de pedidos que o deixou estarrecido:

-Quando podemos ir ter com a gata costureira? Podemos fazer um horário para estarmos com ela? Amanhã já é possível iniciar as visitas? – insistiram os jovens.

Tinha lançado, para mal dos seus pecados, a sua gata como costureira. Era só o que lhe faltava!

Jorge c. Chora

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Alucinações

A avó e duas netas, adultas mas ainda jovens, tomavam chá. A neta mais velha, revelando preocupação com o estado de saúde da ascendente, perguntou-lhe como iam as suas alucinações.

-A avó está com alucinações!? – surpreendeu-se a mais nova.

-Sim, são devidas aos medicamentos que toma…

-Bem…tomei… -tentou explicar a avó, logo interrompida pela neta.

-Está sim. Ainda noutro dia julgava que tinha um homem debaixo da cama.

-Ó Helena, isso era eu a julgar que estava num dia de sorte. Foi…como hei-de dizer, uma esperança a que se seguiu uma enorme decepção. Como vêem é algo que não chegou a acontecer… -e revirava os olhos de um modo coquete, associado a um ar de quem se estivesse a deliciar com a degustação de um chocolate da sua predilecção.

-Está a delirar avó? - questionaram as jovens, escandalizadas pelo arrojo demonstrado.

-Não, minhas netas… estou a sonhar alto… -e continuou, impávida, a barrar o “scone” com uma noz de manteiga.

Jorge C. Chora

terça-feira, 17 de julho de 2012

O Doze e os seus inimigos figadais


Entrou a bambolear-se, com um passo felino, cabelos soltos e um leve sorriso nos lábios. Luís surpreendeu-se por ser o único a observá-la. Ainda não percebera o que se passava, quando notou que muitas pessoas presentes na sala seguiam, como se estivessem hipnotizadas, um homem de meia estatura que entrara um bocado antes.

O que tinha o recém-chegado para atrair as atenções? perguntou-se. Talvez lhe tivesse escapado algum pormenor. Tornou a olhá-lo com maior atenção. Tinha um andar estranho: pernas abertas, braços pendentes, um balancear gingão e os olhos rodopiavam como que a procurar descobrir agulha em palheiro.

Acabou por se desinteressar da figura, continuando, no entanto, a verificar que o mesmo não acontecia com os outros que o seguiam de modo atento. Em definitivo, preferiu olhar para a senhora do andar felino. Quase de imediato, alguém lhe sussurrou um conselho:

-Não tire os olhos do Doze…

-Do Doze?

-Sim chamam-no assim por ter cumprido uma dúzia ou mais de sentenças…

Agradeceu mas não ligou ao aviso. A beldade impôs-se-lhe. À saída precisou de dinheiro e por muito que o procurasse, foi-lhe impossível encontrá-lo. Ao repetir pela enésima vez a busca infrutífera, o cavalheiro que o advertira antes, aproximou-se e murmurou-lhe:

-Tirou os olhos do Doze…Pois fique a saber que ele é o principal inimigo do fisco. Onde ele esteve o fisco recusa-se a ir, e o contrário também é verdadeiro. São inimigos figadais.

Jorge C. Chora

sábado, 7 de julho de 2012

Os lobos e os patos

Uma alcateia esfaimada tinha por hábito ir aos armazéns dos patos mudos, servir-se à vontade e deixá-los quase vazios. Habituara-se a viver à custa dos patos e a exigir-lhes que eles fossem de novo cheios, sem quaisquer contemplações, quer pelo esforço, quer pelo ritmo de trabalho a que os submetiam.

Um belo dia, a gula foi de tal modo desmesurada e engoliram tantas toneladas de alimentos e a uma velocidade tão alucinante, que acabaram por se engasgar e quase sufocaram. Aflitos, lembraram-se da história do
lobo e da cegonha, e vá de gritarem por socorro e de prometerem tornarem-se mais comedidos, caso os auxiliassem.

Os lobos alinharam-se ao longo de quilómetros, de bocas abertas, esperando ser salvos. Os patos, numa correria, procuraram salvá-los da asfixia, mergulhando os bicos nas suas gargantas para lhes retirarem o excesso de comida.

Acreditando nas promessas, a comunidade dos patos mudos não só os ajudou, como multiplicou os esforços para produzir mais, em menos tempo, para encher os armazéns, chegando a destacar alguns dos seus membros para melhor acomodarem os alimentos e assim aproveitaremos melhor os espaços disponíveis.

Livres da morte, os lobos, depressa se esqueceram das promessas. Passaram a comer e a exigir muito mais do que anteriormente.

Muito a custo, os patos mudos questionaram a alcateia sobre as promessas que lhes tinham sido feitas.

-E acham que nós não cumprimos? Pensem lá bem…não sejam ingratos… -resmungaram os lobos.
Os patos entreolharam-se. Algo lhes estava, decerto, a escapar…

-Então, o que nos dizem, senhores patos… -insistiram os lobos.

Os patos calaram-se. Por algum motivo eram mudos. Mais valia terem os bicos fechados do que debitarem um chorrilho de asneiras. Assim pensaram e assim fizeram.

A alcateia faminta depressa esqueceu o assunto, até que um dos patos mais sabidos, chegando-se ao pé de um dos lobos mais jovens o abordou como quem não quer a coisa:

-Olha lá jovem lobo…eu e alguns dos meus amigos fizemos uma aposta. Eu digo que vocês cumpriram a vossa palavra…quando nós vos salvámos…mas os meus amigos são de opinião contrária. Eles julgam que são mais espertos do que vocês.

O jovem lobo riu-se a bom rir. As suas gargalhadas ecoaram pelas redondezas e ele acabou por dizer:

-Quando tivemos as vossas cabeças nas nossas gargantas, podíamos ter-vos comido e não o fizemos. Afinal quem deve a vida a quem? Quem são os ingratos?

Calaram-se os patos. Não queriam acreditar no que ouviam. Só podia ser gozo.
Ainda nesse dia, a alcateia, insaciável, tornou a empanturrar-se de tal modo que se pôs a gritar por socorro…

E sabem que os patos voltaram a enfiar os bicos na garganta dos lobos,tantas vezes quantas foram necessárias?

Jorge C. Chora

sexta-feira, 29 de junho de 2012

tan solo

Iam chegando a conta gotas. Saiam dos seus automóveis de modo lento. Afivelavam sorrisos, ajeitavam com um toque os vestidos e continuavam a sorrir.

Os flashes relampejavam e as fotografias eram tiradas em catadupa. Enquanto desfilavam sorriam. Sorriam sempre.

Entre as louras platinadas e as morenas extraordinárias, algumas ruivas, a que poucos ligavam, proprietárias de bolsas onde até os cêntimos escasseavam.” Se não fossem pobres não eram ruivas” dizia um entendido nas lides sociais a quem alguma ruiva recusara favores.

No meio da sala, uma modelo de outro mundo, também sorria. Os comentadores teciam elogios ao divino vestido, ao modo como ele caía, ao padrão, à qualidade inerente à etiqueta do afamado costureiro. Um dos comentadores louvou os sapatos da modelo. O requinte e a beleza dos mesmos, estavam de acordo com a “griffe” habitual. Nunca o criador concebera, pelo menos até agora, nenhuns fora do alto padrão a que habituara as suas refinadas consumidoras.”Um must” concordaram os críticos.

A modelo mexeu-se. Deu um pequeno passo e o seu longo vestido, arrastando pelo chão, ocultava-lhe os pés e as sandálias do chinês que estava a calçar, já velhas, as únicas que lhe valiam com a unha do pé encravada, que a afligia. E ela sorria.

Um cheiro a cera de igreja espalhou-se pela sala, ao acenderem umas velas.”Odor a santidade” afiançou o decano das notícias sociais. Entreolharam-se os enviados das revistas e acharam que o seu colega devia retirar-se por decrepitude e insanidade.

-Odor a santidade! Só se for ele o santo, coitado! – concordaram.

Ao lado, a modelo dos chinelos continuava a sorrir, enquanto à sua volta adejavam os profissionais, capazes de ver, apreciar e encantar-se com os seus belos sapatos:

-Dizem que ela tem,” tan solo”, 10 pares iguaizinhos aos que está a calçar! – concluiu Manolo, despertando a inveja de quem o julgava íntimo da beldade.

-Não me diga…e eu que tenho três semelhantes aos dela e achava que era uma extravagância… - disse uma bela morena, tapando com a mão esquerda, um pequeno buraco na meia, que vinha a aumentar de há uns tempos para cá.


Jorge C. Chora

domingo, 10 de junho de 2012

O beijo do grifo

Os sons produzidos pela senhora irritavam-no até ao tutano. Chupava os dentes e os buracos das cáries, fazendo lembrar o assobio do vento, em dias de tempestade. De seguida, sorvia o café e degustava os alimentos recuperados, sugando-os como fazem os esgotos pluviais da rua, em dias de chuva. Um horror. O pior é que a dama se julgava um modelo de etiqueta.Preste a ter um ataque de fúria, saiu do café.

À porta, cruzou-se com um amigo que notou a sua indisposição e a quem teve de contar os motivos causadores do seu estado de espírito. No dia seguinte, o mesmo amigo, entrou no estabelecimento de gravador em punho, sentou-se à sua mesa, olhou em redor e perguntou-lhe:

-A senhora está cá?

-Ainda não…mas logo que entrar vai sentar-se na mesa ao meu lado…aposto…

Dito e feito. Mal acabara de falar, a produtora de sons execráveis entrou e sentou-se ao seu lado. O seu amigo iniciou a gravação. À medida que os ruídos se tornavam mais estranhos, o sorriso de satisfação do proprietário do gravador ia-se acentuando.

-Para que queres gravar isto?

-Para ver se consigo afugentar a bicharada da minha horta. Eles comem tudo…dão-me prejuízos.

Tempos depois, ao passar pela dita horta, ouviu, ampliados e difundidos por um altifalante, os pavorosos sons que ele tanto detestava. Os melros, ao fugirem apressados, batiam com violência nas sebes, seguidos pelos estorninhos, pardais e rolas. Em breve deixaram de se ver os bandos de pássaros. Quando o silêncio já reinava, passou a escutar-se um som estranho, uma mistura de grunhidos guturais e de um arfar asmático, intercalado com um glu…glu…profundo e semi-gritado.

Fixou o olhar num pássaro grande que sobrevoava a horta. Era um enorme grifo que se aproximou do altifalante e lhe começou a dar pequenas e suaves bicadas. Reparou melhor e verificou que os bicados eram verdadeiros beijos, transbordantes de afecto.
Uma multidão passou a frequentar a horta e a ver o espectáculo do grifo apaixonado.

As sessões só deixaram de acontecer, quando as autoridades resolveram cobrar taxas aos espectadores.

Jorge C. Chora

domingo, 3 de junho de 2012

As marradinhas do chibo

Todos os dias visitava o seu rebanho de cabras. Quando chegava, elas subiam o monte, rodeavam-no e recebiam em troca folhas de oliveira que comiam deliciadas. Passado um bocado sentava-se na mesa rústica que ali construíra. Um pequeno chibo aproximava-se, saltava para o tampo, fitava o dono e esperava que ele aproximasse a cabeça e dava-lhe uma marradinha suave.

Só ou acompanhado, a cena repetia-se todos os dias. Um vizinho ouviu contar o que se passava e, céptico militante, discípulo de S.Tomé, resolveu certificar-se da veracidade do caso. Pela tardinha, quando sabia que o proprietário lá não estava foi ter com a cabrada. O rebanho subiu ao seu encontro e deu-lhes umas folhinhas que trouxera. Procurou a mesa e sentou-se. Do chibo nem sinal.

Farto de esperar, quando fez menção de se levantar, viu o chibinho subir numa correria o monte na sua direcção. “Agora é que vou ver se é ou não verdade o que me dizem”, resmungou de mau humor, o homem que duvidava de tudo e de todos. Viu-o trepar para a mesa. Fechou os olhos e aproximou a testa do cabritinho.

Mal acabara de os fechar, um enorme bode surgiu de trás de uma moita, saltou para cima da mesa, empurrou o cabritinho e deu-lhe uma cornada tal, que ainda hoje está para saber o que se passou.

O efeito da marrada foi tão devastador, que o homem ainda hoje julga que é “Inginheiro” . Diz disparates com um à vontade de meter dó e estende o barrigão, dizendo, de modo convicto, a tudo o que ouve:

- Hum ..hum… não é bem assim…

Nos tempos que correm, há quem suspeite que tenham sido muitas as pessoas, com responsabilidades e sem elas, que visitaram, à sorrelfa, a quinta e tiveram um mau encontro com o sabido do bode, aliás, um verdadeiro cabrão (pelo tamanho e feitio).

Jorge C. Chora

sexta-feira, 1 de junho de 2012

O dia do gato

Tenho uma gata cor- de- laranja chamada Bli. Bli? Mas que nome tão estranho, dirão os que estão a ler este texto. Bem, parece mas não é. Vou explicar-vos a razão de ser deste nome. Já ouviram falar de Blimunda, uma mulher com poderes mágicos, apaixonada por Baltazar- Sete-Sóis? Talvez não, mas falem disso aos vossos pais e peçam-lhes que lhes contem a sua história. Caso seja um leitor adulto, não perca tempo e leia o livro o mais rápido possível! Pois bem, Bli é o diminutivo de Blimunda.

O que tem a minha gata em comum com a Blimunda? Boa pergunta! Vou tentar responder-lhes à questão. Ambas têm poderes mágicos. A mulher, desde que estivesse em jejum podia ler as pessoas por dentro, saber quem elas eram, o que pensavam, conhecê-las…saber dos seus desejos. A minha gata, fixa os seus olhos em mim e transmite-me o que quer. Mia durante o tempo que for necessário, sem parar, até que eu lhe satisfaça os desejos. Quando acha que estou a demorar mais do que é normal, tira as garras, espeta-me o focinho na barriga e ruge. Os seus olhos verdes são como esmeraldas que nos fitam e embrulham as suas ordens.

Neste momento aproximam-se os três primos, o Francisco o Rafael e a Matilde. É dia 1 de Junho. Eles já receberam presentes mas dirigem-se, apressados, na sua direcção. A Bli olha, aflita, para mim e emite um pedido de socorro:

-Dia da criança uma ova! Também não há dia do gato!

E parte numa correria para cima de um armário, longe do alcance dos pequenos que a chamam:

-Be-li…ande cá… - diz com voz melada o meu neto Francisco, soletrando-lhe o nome de modo meigo.

-Be-li…be-li… - reforçam, em coro, a Matilde e o Rafael.

A Bli olha-os e ignora-os, resmungando:

-Enquanto não houver dia do gato, bem podem chamar-me!

Jorge C.Chora

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Mariana"A Grande"

Mariana ascendera de modo meteórico na escala social. Fizera-o à custa de amantes bem posicionados. Entre eles, diziam os seus detractores, contavam-se quase todos os poderosos e ricos da cidade, incluindo os mais insuspeitos.

Já entrada em anos, mas ainda com queda para o amor, continuou a oferecer o acesso ao sétimo céu aos mais idosos e bem sucedidos concidadãos, com a arte e sabedoria necessária e adequada ao escalão etário dos seus admiradores.

Mariana acumulou vasto património e grandes influências, de que se serviu para deixar à sua descendência uma vida económica sólida, reforçada pelos casamentos e alicerçada em alianças que soube gizar.

Quando entregou a alma ao criador, não houve entre a nata da sociedade quem não tivesse sentido saudades de Mariana. A sua memória perdurou.

Passados uns anos, uma das netas, desconhecendo a história da sua antepassada, convenceu-se de que terem-na chamado de, “A grande”, envolvia notáveis feitos por ela praticados. Laura, assim se chamava esta descendente, empenhou-se em querer homenagear a sua avó e procurou apoio junto ao pároco da sua freguesia, até porque ela sabia que Mariana fizera inúmeras doações para aquela igreja.

Esforçou-se o bom homem por descobrir o que lhe tinha sido pedido. Nas diligências efectuadas, soube através de um idoso benemérito, a verdadeira razão de ser da grandeza de Mariana. Atrapalhado com o segredo, deu voltas à imaginação para descobrir o que dizer a Laura. Resolveu ir adiando,” sine die”, a explicação.

Um belo dia Laura foi ter com ele à igreja, acompanhada do marido e dos seus filhos. O pároco, que era a primeira vez que via o marido, ficou boquiaberto, pois ele teria uns quarenta anos mais do que a mulher:

-Querida Laura, a senhora é a encarnação da sua avó Mariana! Tem de certo a grandeza que ela tinha! Herdou-a…

-Como assim reverendo padre?

-A facilidade em dar-se com os mais sábios, com os mais velhos…a paciência, a arte e o sacrifício em mantê-los felizes…

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de maio de 2012

Vai um cafezito?

Durante três dias consecutivos, na hora de pagar o café da manhã, o cliente estendia-lhe uma nota de cinquenta euros. O senhor do café desculpava-se:

-Ainda é muito cedo. Desculpe-me, mas não tenho troco. Paga para a próxima.

Ao quarto dia, mal o cliente acabou de tomar a bica, o proprietário esboçou um enorme sorriso e cumprimentou-o:

- Bom dia! Hoje já posso servi-lo. Tive o cuidado de ter o troco para a sua nota…

-Oh! Muitíssimo obrigado. É uma gentileza que agradeço de todo o coração… -e, apresenta-lhe uma nota de quinhentos euros, que o força a oferecer-lhe o quarto café.

No dia seguinte, aguardou ansioso a chegada do homem das notas grandes. Tinha tido o cuidado de ter trocos para todas as situações. Ao meio-dia ainda aguardava a sua chegada. Nunca mais lá apareceu nem deu notícias.

Dois anos depois, viu-o entrar e reconheceu-o:

-Então por onde tem andado?

-A arranjar dinheiro trocado para lhe facilitar os trocos – e despeja um saco cheio de cêntimos em cima do balcão, ordenando – pague-se do que lhe devo e dê-me mais uma bica, um bolo e um maço de tabaco!

Nesse momento entraram no estabelecimento os homens da drogaria e o do talho, acompanhados pelo merceeiro que ao verem o monte de moedinhas exclamaram:

-Que jeito nos davam uns troquinhos…

-Se me ajudassem a contá-lo…tenho o café cheio – propôs o dono do café, enquanto continuava a atender.

Logo ali o talhante procedeu à divisão dos cêntimos em quatro montes, distribuindo um a cada um, incluindo o freguês a quem pertencia o saco, com uma recomendação:

-Isso bem contado!

Feitas as contagens e trocados os cêntimos por notas, o dono do café ficou de imediato com uma delas que, por mero acaso, correspondia à dívida total do forasteiro.

Em frente ao cavalheiro que trouxera os cêntimos, sobejou o seu respectivo monte, que a ninguém interessou, por já terem trocos suficientes.

Furioso e irritado com a tarefa que acabara de concluir e por ter de ficar de novo com muitas moedinhas, ainda teve de agradecer o convite que lhe foi dirigido pelo dono do café:

-Vai agora um cafezito?

Jorge C. Chora

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A Beijoqueira

Criava cobras como passatempo. Amava-as. Eram os animais com quem mais se identificava. Notou que uma delas necessitava de cuidados veterinários. Apressada, colocou-a na mala e saiu a correr. Ao dobrar a primeira esquina sentiu algo frio na sua garganta. Era um assalto e a frialdade devia-se a uma faca encostada ao seu pescoço:

-Passa para cá o dinheiro…

-Tenho-o aqui na mala…mas estou tão nervosa que não vou conseguir encontrá-lo… - e,disfarçando um sorriso, abriu o fecho, deixando-a entreaberta.

O larápio enfiou de modo violento a mão na carteira. A rapidez com que a introduziu igualou o modo como a retirou. A cobra abocanhou-lhe a mão e ficou pendurada e quanto mais ele a sacudia mais ela se firmava. A senhora advertiu-o:

-Esteja quieto senão ela não o larga. Chame-a docemente de querida e afague-lhe a cabeça …pode ser que desista…Vou telefonar para o 112 porque a “Beijoqueira” é venenosa…

Ao chegar ao hospital, o amigo do alheio, fez questão de dizer à polícia que tinha sido alvo de um atentado e, caso sobrevivesse, iria colocar um processo à agressora.

O jovem agente de serviço, desabafou, em voz baixa:

-Que Deus não o permita…

-Olhe que eu processo-o por cumplicidade… – ameaçou-o raivoso o abocanhado.

A dona da cobra, que se dirigira ao hospital para recuperar a sua “Beijoqueira”, admoestou-o com uma voz de trovão:

-Devia aproveitar o pouco tempo que lhe resta para se arrepender e pedir perdão ao Criador… e, muito à socapa, com um ar penoso, dirigindo-se ao policial – infelizmente a cobra não é venenosa…

Jorge C. Chora

quarta-feira, 4 de abril de 2012

A fila prioritária

Fez as compras que tinha a fazer e dirigiu-se à caixa para as pagar. Quando se preparava para as colocar no pequeno balcão, ouviu atrás de si uma voz rouca:

-Peço-lhe perdão mas, se me deixasse passar à sua frente, ficava-lhe muito agradecida.

Olhou e viu uma idosa apoiada numa canadiana. Sorriu, ajudou-a a colocar os produtos e inclusive a colocá-los nos sacos. Mal acabara de praticar a sua acção cívica quando surgiu uma senhora grávida. Cedeu de imediato a passagem.

Sentiu-se ainda obrigada a ceder a primazia a mais duas pessoas: uma que transportava uma criança ao colo e a outra que trazia uma bebé no carrinho que dormia o sono dos justos.

Quando, por fim, julgou chegado o momento de ser atendida, apareceu-lhe, afogueada, uma jovem e elegante senhora que anunciou, plena de requebros
snobs:

-Estou grávida de um mês…

Ao ouvir esta declaração deu uma gargalhada sonora e disse:

-Minha querida, acabei mesmo há bocado de fazer amor e estou mesmo convicta, de que engravidei. Terá de esperar pela sua vez. Ah! Antes que me esqueça…Parabéns!

Nesse preciso momento a funcionária da caixa levanta-se, deixando ver uma barriga que denotava estar no fim do tempo e, muito aflita, interrompe o diálogo:

-Mil perdões mas tenho de ir já para a maternidade…

Jorge C. Chora

quarta-feira, 14 de março de 2012

As manhas de "Vou Tar" e "Cointreau"

Chegaram à velhice sem cheta. Em abono da verdade nunca a tiveram. Melhor dizendo, iam tendo mas por pouco tempo, pois derretiam-na em farras.

Com um cadastro recheado de malfeitorias, o tempo que passaram engavetados foi encarado por “Vou Tar” e” Cointreau” como uma espécie de retiro espiritual entre iguais, uma oportunidade para aprender novas patifarias.

“Vou Tar” e” Cointreau” eram alcunhas atribuídas pelas práticas de cada um. O primeiro nunca dissera” vou estar aqui ou acolá”, limitando-se a abreviar; o segundo, desde que provara, numa festa de casamento, onde fora sem ser convidado, um cálice de cointreau, nunca mais quisera outra bebida senão essa.

Ambos eram dados a infindáveis discussões sobre o que se devia fazer ao dinheiro dos outros:

- Agora que estamos em crise, todos os que têm dinheiro a prazo, devem levantá-lo e distribuí-lo equitativamente por quem, como nós, nada tem. Ao governo deve competir assegurar que esse dinheiro chegue aos nossos bolsos.

-Não está mal visto não… -Junto tostões há quarenta anos e agora tinha de vos sustentar -insurgiu-se o”Labuta”.

-Ainda ficas com a tua casa e aquelas territas na aldeia. Bem podes pagar mais uns impostos… -alvitraram os dois sanguessugas.

-Mais ainda? Se calhar também querem que volte a comprar o que é já meu e me custou tanto sacrifício… - revoltou-se.

-Não era má ideia! Era uma forma de partilhar … - concordaram entusiasmados, antecipando o prazer da posse do que não lhes pertencia.

-E se vocês fossem atrás das fortunas duvidosas ou dos que são mesmo muito ricos! - desabafou o “Labuta”.

-Julgas que somos parvos? Com esses nada conseguimos! Ainda éramos capazes de ficar sem o pouco que arranjámos à custa de papalvos como tu! -exclamaram, um tanto fartos da ingenuidade do aforrador.

“Labuta” calou-se. Não estava para se aborrecer ainda mais. Um berro enorme assustou--o:

-Então esse cointreau nunca mais vem?

-E ponho na conta de quem? – gritou o dono no interior do estabelecimento.

-Na do “Labuta” claro!- berraram “Vou Tar” e” Cointreau”.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 7 de março de 2012

A Praça dos amores

Na praça do” sou todo teu”,
cachos de beijos
subiram ao céu,
entre sussurros de
sou toda tua,
serás todo meu.

Nessa praça tiveram lugar,
os amores de Bela,
os aís de Catarina,
as promessas e os desejos de Isabel:
Sou toda tua,
serás todo meu.

Cachos de beijos
sobem ao céu,
entre sussurros
de amor, promessas
que se ouvem,
e se renovam:
Sou toda tua, sou todo teu.
Ainda é a praça do” sou todo teu”.

Jorge C. Chora

domingo, 4 de março de 2012

A ranhosa

No meio da praça a menina estremecia. As lágrimas corriam-lhe por ambas as faces. Ao princípio ela ainda as tentou limpar mas depois desistiu. As pessoas pararam.

-O que te aconteceu Isabel?

E a menina redobrou as lágrimas e o choro. Uma aflição contagiante começou a apoderar-se dos que presenciavam o sofrimento da gaiata.

-O que tens Isabel? Diz-nos, por favor…

-Perdi o dinheiro que os meus pais me deram para o leite. Coloquei-o em cima da cadeira enquanto me assoava. Quando acabei já lá não estava! Eram dois euros. Agora não posso levar-lhes o leite e fiquei sem o dinheiro. A culpa é minha… como é que isto me aconteceu? Eles não vão confiar mais em mim!

E na praça, os avôs e as avós que viram confiscadas partes significativas das suas reformas, que percebiam perfeitamente a sensação de perda e de revolta,
exclamam comovidos:

-Ah como era bom que os grandes tivessem a responsabilidade das crianças!

Num canto da taberna, uma velha ébria retira os dois euros que escondera no bolso e ordena:

-Mais um copito de aguardente e isso depressa, que o dinheirinho não abunda …donde este veio não virá mais nenhum… - e vira-se para a criança que entretanto se aproximara e choramingava ao pé de si – desanda daqui ranhozita… o prejuízo duns é o lucro doutros…

Jorge C. chora

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

A máquina que adorava ser "mademoiselle"

Com maus modos abriu a carteira. Retirou algum dinheiro com uma violência fora de vulgar. Aproximou-se da máquina de tabaco e introduziu uma, duas, três moedas e à quarta, quando atingiu o preço do maço pretendido, carregou no respectivo botão. A máquina não deu qualquer sinal. Repetiu o gesto e nada. Furioso, gritou em direcção ao balcão:

-A máquina está ligada?

-Estar está… ela talvez não goste das moedas que está a utilizar…não serão, quiçá, as que ela está habituada… - respondeu-lhe o proprietário do café.

-Está a insinuar, por acaso, que o meu dinheiro é falso? – abespinhou-se o utente.

-Longe disso. É só um momento – e levantou-se de modo calmo e em duas grandes e vagarosas passadas, cobriu o espaço que o separava da máquina.

Abriu-a e mostrou ao senhor as moedas que este tinha metido: três moedas de euro e uma de um dólar.

- Ainda não está habituada a dólares…

O cliente rendeu-se à evidência:

-Mil perdões…

Abriu de novo a carteira e retirou outra moeda, confirmando que era de um euro. Dirigiu-se, à máquina e, num ápice, colocou as moedas de rajada e carregou no botão. Não houve qualquer reacção.

-E agora o que é que se passa?

-É que ela não está habituada à brusquidão… -referiu quase a medo, com receio de ferir a susceptibilidade do estranho cliente.

-Homessa…

-Empresta-me as suas moedas?

-Claro.

O dono do estabelecimento aproximou-se, afagou-a e foi colocando com delicadeza as moedas de euro e falando com ela:

- A mademoiselle queira perdoar a forma um tanto rude como foi tratada…

E os mecanismos funcionaram às mil maravilhas, havendo quem tenha ouvido, de modo muito claro, a máquina responder:

-Merci mon chéri…

-É uma dengosa… -comentou o utente, despeitado com a atenção que a porcaria da máquina merecia por parte da clientela e do dono.

-Não ligues mademoiselle… é o ressentimento e a inveja a falarem. Coisa de humanos… - consolou-a o proprietário.

Jorge C . Chora

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A surpresa

Numa aldeia, perdida na montanha, vivia um menino diferente dos outros: era muito gordo e movia-se muito devagar. Todos os dias ia à escola. Descia muito lentamente a montanha e demorava três vezes mais tempo do que os outros meninos a descer até ao vale. Chamava-se Santiago.

Um dia, os colegas que viviam na montanha foram atrás dele, escondidos, para verem o que ele fazia durante o caminho. A primeira paragem que Santiago fez, foi junto a uma pequena rocha. Sentou-se, abriu o capote e foi tirando algumas cenouras dos bolsos interiores. Esperou uns dez minutos, em silêncio, e foi mordiscando a cenoura mais pequenina que tirara.

-Como é que ele não havia de ser gordo! Até pára para comer mal saiu de casa! – bichanaram os colegas acocorados.

Na frente de Santiago surgiu um velho coelho, com uma voz trémula que lhe estendeu a pata e o cumprimentou:

-Bom dia meu bom amigo. Desculpa-me o atraso mas hoje tenho uma grande dor numa perna e …

-Estás desculpado. Trago-te umas cenouras bem tenras. Espero que tu e a tua mulher as consigam comer.

-Muito obrigado. Que Deus te pague … - e o velho coelho afastou-se, a custo, carregando a comida que Santiago lhe trouxera.

Levantou-se e seguiu, sem que os colegas se tivessem dado conta do que se passara, pois só conseguiam ver as costas de Santiago. Um bocado mais abaixo tornou a sentar-se. Tirou do capote um frasco de água oxigenada, algodão e uma ligadura e fez um curativo a um jovem corvo que estava numa moita à sua espera.

Atrás dele, espreitando, escondidos, sem nada conseguirem ver, os colegas lançam-se a adivinhar:

-Até esconde comida para o caminho de regresso!

E as paragens foram-se sucedendo junto a umas ovelhas, a uns estranhos pássaros e a uma cabra.

A maior surpresa dos colegas foi quando Santiago colheu flores e as guardou no capote.~

-A fome é tanta que vai comer flores! - comentaram.

Ao chegar à escola os colegas apressaram-se a divulgar a sua verdade aos outros:

-E traz no capote as flores que há-de comer ao lanche. Imaginem!


Quando Santiago chegou ao pátio tinha à sua espera todos os meninos. Olhavam-no com os olhos esbugalhados e um ar trocista.

No alto das escadas, quando Matilde viu Santiago, gritou-lhe bem alto:

-Sabes que dia é hoje?

-Claro Matilde. É dia 14 de Fevereiro…não me esqueci de ti - e abriu totalmente o capote, deixando o chão forrado de flores.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

O gesto

A tesoura da poda em vez de cortar, triturava os ramos, mesmo os mais pequenos. A dona olhou-a e decidiu mandá-la afiar. Na primeira oportunidade dirigiu-se a uma pequena oficina que ostentava um grande cartaz publicitando o serviço pretendido.

-Bom dia. Quanto é que custa afiar uma tesoura? - e separou as mãos, tentando exemplificar o tamanho da tesoura.

-Três euros.

- Ela é assim… -e corrigiu o tamanho, juntando mais as mãos.

-O profissional olhou de novo e apreçou:

-Três euros e meio…

A senhora voltou à carga, esforçando-se por mostrar o tamanho certo do pequeno objecto. Diminuiu, com a máxima precisão, a distância entre mãos. Mal acabara de exemplificar quando um novo preço foi adiantado:

-Quatro euros…

-Mas então, quanto menor é a tesoura mais caro fica o trabalho?

O homem, com um sorriso manhoso e com uma pronúncia sibilante sentencia:

-E é para quem quer!

E a jovem senhora, junta os tacões dos seus pequenos sapatos, coloca-se em bicos dos pés, faz o gesto do Zé Povinho e atira:

- O Tanas!

Jorge C. Chora

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O telefonema

Quis telefonar e não consegui:

o fio do telefone tinha sido cortado.

Fui a outra cabine e também não resultou:

a caixa onde se colocavam as moedas desaparecera.

À terceira onde fui, tinha o telefone, o fio e a caixa,

mas estava avariada.

Quando finalmente encontrei uma a funcionar,

esqueci-me por que motivo queria telefonar.

Jorge C. Chora

sábado, 7 de janeiro de 2012

O servo de Midas

O facto do anafado e beberrão Sileno, se ter perdido da comitiva do seu amigo Baco, o deus Baco, é de todos conhecido. O que se seguiu também é do domínio público: o rei Midas encontrou o borrachão, tratou-o às mil maravilhas e entregou-o são e salvo ao deus do vinho. Felicíssimo pelo seu amigo ter sido encontrado, Baco concedeu a Midas a concretização de um desejo: transformar em ouro tudo em que o rei tocasse. Até aqui não há novidade nenhuma.

Quando Baco concedeu ao rei Midas a concretização do seu desejo, a de transformar em ouro tudo em que tocasse, mal sonhava que um dos servos do rei estava a espreitá-los. O servo viu Baco ir à caixa do pó mágico e lançá-lo sobre Midas.

“Tudo Quer” era o nome deste servo que ficou possesso ao ver o rei tocar numa maçã e esta transformar-se em ouro. A cobiça cegou-o.

Um frenesim demoníaco tomou conta dele. Esgueirou-se porta fora e correu para o local onde estava a caixa com o pó que vira ser lançado sobre Midas. Nervoso, sôfrego, incapaz de controlar o desejo, mergulhou a mão na caixa trazendo uma enorme quantidade de pó mágico, que se apressou a atirar sobre si próprio. Sentiu o peito rebentar-lhe de felicidade. Já podia ter tudo o que quisesse. Veloz, dirigiu-se ao celeiro do palácio, lançou-se sobre um fardo de palha e abraçou-o de imediato. Qual não foi o seu espanto quando, em vez do fardo se transformar em ouro se tornou num enorme monte de esterco. Levantou-se mais rápido do que um relâmpago e atirou-se para outro fardo: apareceu um segundo monte de esterco!

Com a cabeça perdida, correu para uma sela pendurada na parede. A sela, depois de tocada, transformou-se no terceiro monte de esterco. Recusou-se a acreditar no que lhe estava a acontecer. No dia seguinte, foi com satisfação que verificou que podia tocar novamente em tudo, que nada, mesmo nada acontecia. Quando se convenceu que o sortilégio tinha deixado de existir teve a muito desagradável surpresa de verificar que no dia seguinte voltara ao mesmo: Tudo em que tocava se transformava em esterco.

Como iria reagir o seu rei ao vê-lo transformar em porcaria tudo aquilo em que tocasse?”Tudo Quer” arrependeu-se mil vezes do acto que cometera. Fugiu e só parou ao pé de um porto onde estavam ancorados alguns barcos. Pela calada da noite logrou embarcar sem que ninguém o visse. O navio partiu no dia seguinte e navegou vários dias.

Acabou por desembarcar num porto desconhecido, na cidade de Olissipo. Por lá se casou e teve numerosa prole. O único senão é que os seus descendentes herdaram o seu problema: dia sim dia não, tudo em que tocavam se transformava em mer..

Foram tão numerosos os descendentes que povoaram boa parte do território europeu e alguns partiram com Colombo para as Américas.

Muitos deles acabaram por se dedicar à política, à banca e aos negócios imobiliários…

Livra!

Jorge C. Chora

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

O Flamejante

Chegou ao lugarejo envolto numa auréola de mistério. Ninguém fazia ideia de quem era o fulano, o que fazia, ou porque escolhera aquela terra para viver. Sentiam, no entanto, de modo vago, que havia qualquer coisa de familiar nele…

Alguns dos habitantes apressaram-se a construir-lhe uma fama de dotado, habilidoso, capaz de prodígios que eles próprios atestaram como tendo presenciado. Forjaram com o estranho uma partilha de intimidade, uma comunhão de interesses imaginária:

-Se vocês imaginassem quem ele é… claro que não sabem… - dizia um dos amigos, ficcionando uma proximidade, procurando elevar-se aos olhos dos conterrâneos.

-Claro que eles estão impossibilitados …nem sequer são seus amigos… - concluía outro dos aldeões.

Em tempo recorde, ninguém ficou excluído de pertencer ao círculo de íntimos de amigos do recém-chegado.

-Afinal como se chama o homem? - perguntou alguém.

-O que é que isso interessa? – repreenderam-no os restantes.

O tempo foi passando e os locais foram dando e reforçando as provas de apreço, ao que o estranho respondia com um breve franzir da testa. Desconhecendo o significado de tal comportamento, empenhavam-se ainda mais procurando satisfazê-lo em tudo o que estivesse ao alcance.

Ao fim de quinze dias, o forasteiro ofereceu os seus préstimos para atear a fogueira que daria início à festa da aldeia. À hora marcada, a população compareceu frente à câmara municipal e o amigo de todos também. Olhou em redor, esboçou um sorriso e pediu que segurassem uma pequena tocha, à distância de dois passos da pira de lenha. Avançou cerca de cinco metros e parou. Ficou imóvel durante um tempo, com as mãos colocadas em posição de oração.

Um silêncio pesado abateu-se sobre os presentes. O homem continuava hirto e concentrado. Quando a multidão menos esperava, levanta a perna esquerda, espera uns segundos que a flatulência faça efeito e…eis senão quando, bombardeia a tocha que lança o fogo ao madeiro. A chama era tão intensa que se propagou ao edifício camarário e ao casario em seu redor. Nada sobrou da aldeia. Foi aí que alguns dos presentes se lembraram de que num sítio próximo, um homem que ficou conhecido como o “Flamejante”, tinha feito a mesmíssima coisa.

Pior do que as chamas e as ruínas, só o fedor pavoroso, por incrível que pareça, ficou a pairar na localidade desde essa época.

O “Flamejante” continua a andar por aí.Por precaução, vá apertando o nariz…

Jorge C. Chora