sábado, 10 de dezembro de 2011

A dor de dentes

Dormira mal. As olheiras bordavam-lhe os olhos, as pernas pesavam-lhe e pareciam pedir licença uma à outra antes de darem cada passo. As palavras encadeavam-se com esforço e o pensamento estava emperrado. Estava um bagaço.

Parou junto à vendedora de flores. Deu uma vista de olhos às plantas e fixou o olhar num pequeno vaso com piripiri. Absorto, deixou-se estar, olhando fixamente o dito vaso. Um bom bocado depois, a idosa vendedora decidiu intervir:

-Ora aí tem um remédio que talvez resolva o seu problema.

-Remédio… mas…

-Nem mas nem meio mas. Neste momento só aqui estamos os dois, ninguém ouve, tenho vagar…

-Muito obrigado…

-É assim... colhe dois ou três destes gindungos, lava-os, corta-lhes o pé, coloca-os num pão com uma bifana e truca…para a frente é que é o caminho.Vai ver que ganha uma alma nova…

Entretanto chegara a mulher do “paciente”, ainda a tempo de ouvir o final da “receita”. Sorriu e agradeceu o cuidado com o seu amado:

-Obrigado pela sua ajuda minha senhora…mas ele tem é dores de dentes, fortíssimas…

-Ah! Também serve minha jovem…essa também é a desculpa do meu homem …

E no dia seguinte, quando o casal passou pela vendedora, uma piscadela de olho por parte da jovem e sorridente senhora, foi o maior agradecimento que a sabida vendedora podia ter tido.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Viver com o rei na barriga

Sentado à porta de casa, sacode a farta cabeleira suja e afasta as inúmeras moscas que esvoaçam em seu redor. Sorri a quem passa, mesmo aos que fingem não o ver.

-Estás à espera de quê? – interroga-o o vizinho com maus modos e sobranceria sobeja.

-De que me venham buscar o carro…

-Já perdeste a casa, agora é o carro … a seguir será…

-Aquilo que eles quiserem. Sem emprego e sem dinheiro estou sujeito…

-Pois é…quem te mandou a ti sonhar…ter casa, ter carro …onde é que já se viu? eu era o teu chefe e sempre vivi em casa alugada. Fartei-me de poupar. Até o carro era o do meu sogro… - e inchava o peito, sentenciando, de modo retorcido - vaidades que agora pagas caro!

E o da farta cabeleira suja, olhava António, que fora seu colega, bufo a tempo inteiro, chefe que lhe ia reduzindo o salário e que o despedira a mando dos verdadeiros chefes.
Ainda António não tivera tempo de se afastar dois passos, quando o carteiro o viu:

-Sr. António, tem aqui uma carta registada para si.

Abriu-a, leu-a e empalideceu.

As moscas largaram o homem da farta cabeleira e passaram a circundar o novo desempregado. O primeiro, chegou-se para o lado e criou um novo espaço.
Quem passar pelo local, vê agora dois homens que sacodem, à vez, as fartas cabeleiras sujas e que respondem, quando lhes perguntam o que estão ali a fazer:

-A ganhar calo de tanto ouvir que fomos os responsáveis pela crise!

E os que ainda não receberam a carta, seguem ufanos o seu caminho, respirando fundo e comentando com desdém:

-Pois é…viveram com o rei na barriga e agora…

Jorge C. Chora

sábado, 12 de novembro de 2011

Alberto e os chapéus-de-chuva

A relação de Alberto com os chapéus-de-chuva é extraordinária. Não acreditam? Pois tenham um pouco de paciência e leiam o que vos vou contar e tirem, depois, as vossas conclusões.

É raro o dia em que ele regressa a casa com o seu chapéu. Também acontece ao leitor? Ah! Leva um velho mas ao voltar, traz um novo! Bom para si, embora mau para os outros. Isso não acontece com a nossa personagem. Ele leva um novo e fica sem ele. Como assim? Umas vezes empresta-o mas a maior parte das vezes, pura e simplesmente, quando chega ao sítio onde o deixou, alguém o levou. Mas o que aconteceu ontem deixou-o meio aturdido e descrente na humanidade. Chovia a potes e o seu chefe teve de ir para casa mais cedo:

-Ó Alberto empresta-me o seu guarda-chuva?

-Claro!

- Amanhã devolvo-o. Esteja descansado.

Hoje, antes de entrarem ao serviço, foram ambos tomar café. Alberto teve de sair antes, numa altura em que chovia com intensidade. Pediu o chapéu ao chefe e este, olhando-o bem nos olhos, disse:

-Olhe que este é de estimação. Quero-o de volta… nada de esquecimentos…

Achou o nosso homem que o chefe brincava. À hora da saída, o chefe não esteve com meias medidas:

-Ó Alberto…nada de esquecimentos…onde está o meu chapéu? – e logo de seguida abalou, trauteando uma canção, bem abrigado da chuva.

Alberto, não teve outro remédio senão dar uma corrida à loja do chinês, que ficava no quarteirão ao lado. Só havia um, por sinal bem mais caro do que o habitual, por ser único e estarem esgotados. Sem alternativa, todo a pingar, comprou-o. Ao chegar à porta, tirou o celofane que o envolvia. Ainda teve tempo de ver o dono da loja, com um molho de guarda-chuvas debaixo do braço a repor a mercadoria. “Esgotados uma ova!”exclamou para si próprio.

Cabisbaixo, abriu o guarda-chuva e afastou-se. Não caiu nem mais um pingo. Apanhou o metro e descansou um pouco. Sentiu alguém a puxar o guarda-chuva, abriu os olhos e deu de caras com o seu chefe:

-Ouve lá… ó Alberto…por acaso … não fui eu que to emprestei…

E quando Alberto saiu do metro já vinha de mãos a abanar.

Digam lá meus amigos que a relação que ele tem com esse objecto não é muito especial? E o apego que alguns têm ao que é nosso… não vos faz lembrar qualquer coisa?

Jorge C. Chora

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A vocação de Abraão

As bocas semi-abertas de espanto não podiam ser mais expressivas. A ninguém, mas a mesmo ninguém, passaria pela cabeça ver algum dia o sorriso aberto, feliz, luminoso e até contagiante do Abraão. Há anos que não sorria. Não tinha motivos para o fazer e anunciava aos quatro ventos essa desilusão. Estava em crise por não saber o que a vida lhe destinava.

-Abraão! Conta-nos o que se está a passar contigo! Qual é a novidade que te faz sorrir?

-Estou muito contente…julgo ter descoberto o que a vida me destina…o sentido profundo da minha existência…

-Conta-nos…partilha connosco, pobres mortais arredados há muito de motivos de satisfação… - imploraram os amigos.

-A causa é banal, está ao alcance de todos…é mesmo ridícula e inconfessável… - escusava-se Abraão.

-Vá, conta-nos, não nos faças a maldade de te calares…

-Sou capaz de ter descoberto a minha vocação. Andava sem rumo, ao Deus dará, e de repente…zás…fez-se luz …

E de novo as bocas dos ouvintes se abriram de espanto. A ansiedade começou a apoderar-se do grupo. Qual o segredo de Abraão?

Após uma semana inteira de insistência, conseguiram levantar uma pontinha do véu: Abraão tinha-se dedicado a praticar o bem. E mais não se disse.

Foi por mero acaso que se veio a saber que Abraão oferecera os seus préstimos a uma casa de diversão nocturna, onde ajudava as artistas a despirem-se, antes de entrarem em cena.

-Mas isso é que é o teu trabalho caritativo?

-Só vos contaram metade. Também as ajudo a vestirem-se…ah! E trabalho à borla!

Desde esse dia, acrescentaram-lhe um “ c” antes do nome e não há amigo que não queira ajudá-lo na sua missão caritativa.

Jorge C. Chora

sábado, 5 de novembro de 2011

D.Galo

Sacudiu a crista e enfureceu-se com o descaramento e a falsidade dos colegas galináceos. Começaram por lhe dizer que era velho e não tinha as mesmas necessidades do que os outros. Deu-lhes uma bicada, cacarejou forte e feio. Foi pior a emenda do que o soneto. Uniram-se todos, reduziram-lhe a ração e acabaram por expulsá-lo. O tempo era de crise, não havia para todos, tivesse paciência.

-O que vou fazer agora? – perguntou.

-Tivesses pensado nisso antes! Já viveste o suficiente. Há que dar lugar aos outros! – gritaram-lhe os que ficaram no galinheiro, incluindo alguns bem mais velhos do que ele, que lhe deviam avultados favores, sendo os que mais incitavam a turba ululante.

Cacarejou em vão o brioso e velho galo:

-Se vocês estão assim, fortes e decididos, também a mim o devem!

E não teve outra solução senão a de se afastar e definhar à vista de todos, sem o auxílio de ninguém.

-Chega-te para lá. Dá lugar aos novos. Para que nós vivamos melhor, precisamos que desapareças.

-Morre depressa velho estupor. Só o simples facto de te vermos já nos faz mal ao espírito!

Desterraram-no para um sítio longínquo, fora da vista de todos. Dia sim, dia não, era destacado um dos mais novos para o cumprimento de uma missão: verificar se o velho ainda vivia.
À mesma hora, ecoava pelos montes a mesma notícia:

-Ainda vive!

- Oh! Não é possível… - resmungavam os jovens galos.

O tempo foi passando e os chefes do galinheiro foram reduzindo os grãos atribuídos à população, pese embora as reclamações veementes dos habitantes.
As expulsões foram-se sucedendo a um ritmo alucinante e as mortes dos galos mais novos foram acontecendo em catadupa.
Esqueceram-se do velho galo até que um dia, alguém se lembrou dele e mandou averiguar o que se passava.

-Ainda vive!

-Oh! Não é possível! – admiraram-se os sobreviventes.

-Qual será o segredo? – questionaram-se, cheios de curiosidade.

Decidiram enviar uma representação, com o objectivo de obter, a bem ou a mal, a solução para os seus problemas. Primeiro que escolhessem quem faria parte da embaixada, sucederam-se as discussões, os melindres e as rejeições. As escolhas foram feitas e refeitas inúmeras vezes.

Constituída finalmente a comitiva, quando lá chegaram, depararam-se com um velho, gordo e formoso galo, imóvel, deitado numa fofa cama.

Em silêncio aguardaram que o galo lhes dirigisse a palavra. Após longas horas de respeitosa espera, aproximaram-se, pé ante pé, chamaram-no e tornaram a chamá-lo.

Tinha acabado de morrer o raio do galo velho!

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de novembro de 2011

Não há pachorra!

Reparava máquinas de lavar, mas já arranjara outro tipo de máquinas. Era um faz tudo, bastava que a oportunidade surgisse. O negócio estava fraco. Na semana anterior não tinha tido qualquer chamada de assistência caseira. Para cúmulo do azar, nem na oficina entrara uma máquina. Nem uma batedeira de cozinha!

Hoje, mal entrara na oficina, desatou a receber telefonemas. Uns eram para fazer reparações domiciliárias na localidade, outras nos confins do inferno. Disposto a recuperar o prejuízo da malfadada semana, decidiu começar pelas mais longínquas e depois aproximar-se à medida que fosse despachando o trabalho.

Depois de quase duas horas de viagem por caminhos de cabras, conseguiu chegar ao primeiro local. Mostraram-lhe a máquina avariada e iniciou os preparativos para a reparação. Retirou da maleta a ferramenta de que precisava em primeiro lugar, deslocou a máquina para uma posição em que pudesse trabalhar melhor e ligou-a. Não dava sinais de vida. Andou às voltas com o eventual problema eléctrico até que verificou que pura e simplesmente não havia electricidade: estava cortada. Já nem assistiu à discussão entre o marido recém-chegado e a esposa.

-Não há pachorra! – exclamou ao retirar-se.

Seguiu para a outra localidade, ainda mais inacessível do que a anterior. Quando lá chegou, antes de iniciar qualquer manobra, verificou se havia luz. Havia corrente mas a água não chegava à máquina. A torneira de passagem estava fechada. A senhora fechara-a e esquecera-se de a abrir. Perdera tempo e o que restava da sua paciência.

-Não há pachorra! – repetiu, profundamente aborrecido.

Regressou à oficina. Durante o percurso, irado, ia proferindo palavrões, tantos quantos nunca imaginara dizer até aquele momento da sua vida. Chegado ao destino, quando ia começar a trabalhar, telefona-lhe a mulher, pedindo-lhe, com urgência, que desse um pulo a casa pois a máquina de lavar não funcionava.

-Ó mulher, vê lá se não desligaste a luz por acaso!

-Não, não desliguei…

-E tens a água aberta?

-Sim.

A contragosto foi a casa. A primeira coisa em que reparou, ao pé do telefone, foi na conta da luz. Não estava paga. Havia outro envelope, ainda fechado, ao lado. Teve um pressentimento mau e abriu-a: era um aviso do corte da luz. Furioso, trovejou:

-Ó mulher, não me digas que não pagaste a luz! É sempre a mesma coisa! Era mesmo o que hoje me faltava!

-Então não foste tu que a ficaste de pagar? Tu não me digas… não há pachorra! É que não há mesmo pachorra…

Jorge C. Chora

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

O Beijo

O cabelo caía-lhe em cascata ocultando-lhe, parcialmente, o rosto angelical. O vestuário irrepreensível, moderno, mãos e pés cuidados, uma perna esguia e depilada ao pormenor. Era assim a jovem senhora que seguia sentada no metro e atraía as atenções. Abriu a carteira, retirou um telemóvel e digitou um número.

-Sim…pois é verdade…acredito que o beijo criou o mundo…

À sua volta várias cabeças abanaram, concordando, de modo silencioso, com a afirmação.

-Acredito mesmo que o beijo criou o mundo… -tornou ela.

E as cabeças dos ouvintes tornaram a concordar.

A jovem e muito convincente senhora, guardou o telemóvel, retirou uma agenda e beijou-a. De seguida beijou uma chave, um fio, uma série de documentos e, com todos os olhos postos nela, descalçou um sapato, beijou-o, calçou-se de novo e saiu na estação seguinte.

No banco ao lado, um homem pequeno, com um longo chapéu e de papillon, dá um pulo e diz:

-Não se preocupem, eu costumo tomar conta dela… - e salta do comboio, beijando o chapéu e gritando - Espera por mim minha querida!

Jorge C. Chora

terça-feira, 11 de outubro de 2011

O encantador de vespas

Quando Lisa pediu a casa emprestada a Afonso para passar uns dias de férias, este disse-lhe que sim, mas fez-lhe um pedido:

-Empresto-ta com uma condição…

-Qual?

-Não faças mal às vespas que estão na varanda da frente. Elas não te incomodam e até adivinham as tuas necessidades…

Lisa olhou o amigo com atenção. Sabia que Afonso era um tanto excêntrico mas o que acabara de ouvir ultrapassava esse nível. Resolveu não o questionar. Por experiência própria sentia que mais nenhuma explicação lhe seria dada.

Mal chegou ao destino, Lisa dirigiu-se à varanda e viu um enorme enxame de vespas. Elas circularam em torno de si durante uns segundos e afastaram-se.

A meio da tarde, com o fato de treino vestido, ao passar pela varanda, o enxame zumbiu ameaçador à sua volta e Lisa desatou a correr pela rua fora.Trinta minutos depois, o enxame ultrapassou-a e fê-la correr no sentido inverso, até casa.

A cena repetiu-se durante duas semanas. Ao fim desse tempo Lisa sentia-se outra: recuperara a forma, respirava melhor e estava bem consigo própria. Resolveu repousar ao ar livre, apreciando o fim de tarde e o pôr-do-sol. Reparou no cavalheiro grisalho e de porte atlético que acabara de se sentar na varanda em frente da sua. Já o vira na piscina do aldeamento turístico e achara-o interessante. Confirmou a sua impressão ao observá-lo mais atentamente. De repente, o enxame dirigiu-se ao cavalheiro, cercou-o, perseguiu-o e obrigou-o a correr na direcção de Lisa.

-Por aqui! – gritou-lhe Lisa, abrindo-lhe a porta e colocando-o ao abrigo do perigo, enquanto o abraçava, até o sentir calmo e rendido à sua ternura.

Nessa mesma noite Afonso telefonou-lhe e disse-lhe:

-Não te vou perguntar nada, mas caso estejas a dar-te bem com as vespas, recompensa-as e compra-lhes mel de rosmaninho…diz-lhes que depois eu converso com elas.

A mercearia local esgotou, por duas vezes, as provisões de mel.

Jorge C.Chora

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

A herança

Quando Jolie morreu ninguém ligou a mínima importância ao facto:

-Menos um bêbado…um vadio…

-Ora…não se perdeu nada…só um maricas – comentou desdenhoso o conquistador do bairro – enquanto imitava os trejeitos do falecido.

Semanas depois soube-se que afinal o “desgraçado” era riquíssimo e deixara indicações para que o seu último namorado secreto, herdasse a fortuna. Mesmo depois de pagar os devidos impostos, o bolo seria tamanho que poucos saberiam escrever correctamente a quantia.

O bairro agitou-se. Quem seria o herdeiro? Será que teria o descaramento de se apresentar? Alguns dias depois, soube-se que um enigmático testamenteiro, iniciaria as averiguações e quereria, com a maior brevidade, deixar o assunto resolvido. Para respeitar a privacidade, foi anunciado que existiriam entrevistas para apurarem a veracidade dos testemunhos.

Duas semanas após o início das “demarches” pouco ou nada se sabia do assunto.Com o decorrer do tempo caiu um manto de silêncio sobre o ocorrido.

Um belo dia, à porta do escritório, foi afixado um aviso:

“Agradeço, sem excepção, a todos os candidatos, o empenho demonstrado nas provas práticas realizadas. Lamento informar de que afinal houve um lapso e que o dinheiro deixado por Jolie não chega sequer para pagar as formalidades testamentárias. De qualquer modo, informam-se os candidatos de que existe uma lista de classificações, que pode ser requerida a pedido dos interessados.”

Mal acabara de ser afixado o aviso quando o conquistador do bairro, certificando-se de que ninguém o via, arranca furioso o papel e profere uma feroz ameaça:

- Aí se eu te apanho…grande aldrabão…

Desde desse dia, olha de soslaio para todos os que perguntam pelo testamenteiro e questiona-se em que lugar da lista teria aquele ficado.

Também quer candidatar-se à herança de alguém que nem conhece? Cuidado com as provas práticas!

Jorge C. Chora

Juro e torno a jurar

Malandro como ele, só ele próprio. Mentia tanto ou tão pouco que se convencia de que o que dizia era a pura verdade, quentinha, acabada de sair do forno e servida em salva de prata. Jurava por tudo e por nada. Dizia-se pobre e era rico e afirmava a pés juntos que se os amigos soubessem até iam pedir para lhe dar.

-Coitadinho! –exclamavam os ouvintes.

-Sou o mais humilde da minha rua… -lamuriava o ricalhaço.

-Ai se a falsidade matasse…

O malandro ria-se, contente com as suas petas e com o facto de ninguém as aceitar, comprazendo-se e valorizando-se pelos nãos.

Gabava-se da sua fealdade, coisa que ninguém desdizia por ser tão evidente, para logo de seguida, à boca cheia concluir:

-Mas nenhuma resiste ao meu enorme encanto secreto…não sei se me faço entender…neste caso tamanho é qualidade… -e esticava-se, mostrando um chumaço, um verdadeiro e quase ofensivo volume quase a rebentar-lhe as calças.

Ninguém se ria, contra factos não havia argumentos, resmungavam mas ninguém ousava dizer nem aí nem ui, perante a demonstração de virilidade do minorca, do malandro mor do bairro e das redondezas.

Ainda não acabara de se esticar e pavonear, quando a mulher, furiosa, lhe grita e o ameaça da janela:

-Anda cá trazer-me a cenoura que me roubaste! Todos os dias me roubas a maior e tu nem delas gostas!

-Não te apoquentes querida…foi para dar às pombinhas…

Jorge C. Chora

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A Perfumada

Amélia pavoneava-se no meio das colegas, dando-lhes a cheirar o pulso e o pescoço enquanto comentava:

-Acho este perfume que hoje estou a usar delicioso. Talvez um tudo-nada forte de mais…

As colegas não se faziam rogadas e cheiravam-na, dilatando as narinas e aspirando profundamente as fragrâncias. Algumas referiam as notas florais e outras identificavam as madeiras específicas que ajudavam a formar o conjunto e a dar-lhe a individualidade.

Amélia sorvia a admiração das colegas, regozijava-se com a atenção que elas lhe davam. Elas eram unânimes em reconhecê-la como louca por perfumes e a única que fazia gala em usar todos os dias um diferente.

Estavam ainda de narizes no ar quando entrou na loja uma senhora ainda jovem que exclama ao ver Amélia:

-Olá! Hoje não consegui perfumar-me lá no supermercado. Cheguei tarde. Qual foi o perfume que disponibilizaram? Foi bom ou nem por isso?

No dia seguinte, quando Amélia passou pelo supermercado antes de ir para o trabalho, encontrou todas as colegas na fila da perfumaria, para experimentarem as amostras das demonstradoras.

A loja onde trabalhavam ficou conhecida como o jardim dos aromas.

Jorge C.Chora

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A história de Tosse-Coff

Atiraram-no por cima do muro e caiu em cima da cadela Bá que alimentava cinco recém-nascidos. A cadela rosnou furiosa com a intromissão. No início não se apercebeu do que a tinha atingido. Ao ver um gato, o seu primeiro impulso foi o de o afastar das suas crias.

Quando o ia abocanhar notou que o gato era minúsculo e estava assustado. Não tinha ainda os olhos abertos. Ao sentir a aproximação do focinho, parecia um balão a deixar sair o ar: Pfff…pfff

Bá puxou o pequeno gato que tremia, aconchegou-o e colocou-o junto aos seus filhos, alimentando-o.

O tempo foi passando e o gato aprendeu a ladrar, ainda que de um modo bem estranho:

-Coff…coff…coff

Por muito que a mãe Bá se opusesse, a ninhada de cachorros chamava-o de Tosse-Coff.
Tosse-Coff não achava piada ao gozo dos irmãos de leite, muito menos quando lhe diziam que era parecido com um gato. Achava os ditos de um profundo mau gosto.

Um belo dia, a dona de Bá reparou na presença do gato e encheu-se de fúria ao ver que os cães não só não o perseguiam como ainda conviviam felizes com ele.
Expulsou-os todos de casa:

-Querem lá ver isto! Era o que me faltava! Fora…fora- e dava pontapés na Bá que ia protegendo como podia os filhos e o Tosse-Coff.

Do outro lado da rua estava D. Isabel que observava, espantada, o desenrolar da cena. Viu Tosse –Coff tomar a dianteira, colocar-se à frente de Bá e fazer frente às ameaças e agressões:

-Coff…coff… - e saltava, recuando logo de seguida, para logo saltar ao ataque, dando tempo a que Bá se afastasse em segurança.

Ao ouvir os gritos e acusações da agressora, logo percebeu o que se passava. Atravessou a rua e tentou acalmar a megera, sem qualquer sucesso:

-Leve-os para sua casa! Rua…rua…

D. Isabel sorriu, afastou-se um bocado, bateu na sua perna e disse:

-Anda Tosse-Coff, traz a tua família e vem para minha casa. São muito bem-vindos.

Jorge C. Chora

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os "calduços"

Mal os primeiros roncos de motor se ouviam, as apostas desencadeavam-se:

-Cai ou não cai? Quem aposta no sim? E no não? – e o Ruço ia aceitando o dinheiro e anotando os respectivos apostadores.

O carro aproximava-se e as atenções de todos os jovens concentravam-se no buraco existente à frente da esplanada do café da vila. Esperavam e viam se a viatura conseguia evitá-lo ou se caía nele. A diversão há muito que existia e era um dos passatempos de Verão.

Uma espécie de soluços à mistura aliada a um arfar roufenho, colocou em alerta os jovens que se preparavam para as apostas.

-Ó malta, deve ser o ti`Afonso !- berrou o Ruço.

Uma carripana, progredindo aos solavancos, conduzida pelo velho Afonso, ao abeirar-se da cratera foi desviada por um grande grupo dos jovens presentes que lhe fez sinais para o desviar do perigo.

Um visitante estranhou o facto:

-Tantos a avisarem o senhor? Então as apostas?

-Se não o avisarmos, já sabemos… temos todos de nos pôr em fila para levarmos um “calduço”…

-Mas ele não sabe da existência do buraco?

-Saber sabe…mas esquece-se… - responderam os que estavam mais próximos.

-Mau…mas o que estranho é que vocês deixem que eles vos dê uns cascudos…

-É que ele é nosso parente…muito próximo…a maior parte de nós somos sobrinhos-netos e alguns… netos…

-Bom…mas nem todos são…eu, por exemplo, não lhe admitia! Virava-me…

-Estavas tramado…levavas cascudos de todos os netos e sobrinhos-netos.

Jorge C. Chora


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

A camisola

Olhava-a de modo disfarçado, desviava os olhos para logo de seguida tornar a olhá-la. Estava sentado no banco do comboio bem à sua frente. Era um senhor de meia-idade, de ar distinto. Via-se que estava incomodado. Mexia-se, cruzava a perna, descruzava-a, parecia não ter posição. Entretanto ia desviando os olhos e olhando de modo nervoso a jovem senhora.

-A senhora desculpe-me…estava a evitar dizer-lhe mas não consigo …tem a camisola ao contrário… - disse-lhe o cavalheiro.

A jovem puxou a gola um bocado para a frente, observou-a e agradeceu:

-Tem toda a razão. Muito obrigada. – e, logo a seguir, recolheu o braço direito para o interior da camisola, seguindo-se o braço esquerdo, fazendo-a rodar no pescoço, corrigindo a sua posição e repondo correctamente a parte da frente e a detrás. Isto tudo sem mostrar sequer um milímetro de pele.

O cavalheiro arqueou as sobrancelhas e demonstrou o seu espanto:

-Que rapidez…que eficiência…se soubesse ter-lhe-ia dito mais cedo…não mostrou nada…quase que me arrependo de lhe ter feito o reparo…

A jovem sorriu timidamente e respondeu-lhe, sem qualquer inibição:

-Só daqui a dois meses é que valerá a pena, quando tiver mudado completamente e me chamar Madalena em vez de João.

-Pois olhe menina, para mim, já é Madalena… -respondeu-lhe o cavalheiro, de modo delicado, sem perder o pé.

-Então daqui a dois meses…não me esquecerei de trazer a camisola ao contrário - despediu-se a futura Madalena, ao apear-se na estação seguinte.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O que para uns é ouro...

Caminhava pela berma da estrada de modo inseguro. Apoiado em canadianas ia à horta tratar os tomateiros. Carregava, suspenso ao pescoço, um alforge cujas bolsas lhe pendiam ao peito e balouçavam ao sabor dos pequenos passos que conseguia dar. Não tinha quem o ajudasse e não se queixava por dois motivos: o primeiro porque nunca tivera esse hábito, o segundo porque nunca tivera a quem.

Ia pensando que a aliança entre a sua idade, que crescia a olhos vistos, e a doença que persistia em atacá-lo, lhe afectava a marcha e os seus pequenos afazeres, quando sentiu uma voz atrás de si:

-Pst…pst…para onde é que o cavalheiro vai?

Desconhecendo por completo a voz, esteve vai-não-vai para se abespinhar. Qualquer coisa lhe dizia que algo estava para acontecer.

-Então o tiozinho não fala com os pobres? Manias de rico…

A dor do joelho acentuou-se. Mau sinal, pensou. Resolveu conter-se e ripostou:

-A única riqueza que tenho, está nestas bolsas que levo ao peito e, caso faça muita questão, sou homem para a partilhar consigo…

Ainda mal acabara a frase quando sente em cima de si dois braços a agarrá-lo e as mãos do amigo do alheio a enfiarem-se nas bolsas do seu alforge e a roubarem-lhe o conteúdo.

Quando o larápio se deu conta de que o que tinha nas mãos era estrume, enfureceu-se:

-Está a gozar-me? Então isto é que é a sua riqueza?

-Então o senhor ladrão não sabe, ou ninguém lhe ensinou, que o que é ouro para uns é trampa para outros?- e, sem que o larápio esperasse, assentou-lhe uma bengalada no alto do cocuruto que o deixou a cacarejar.

Um vizinho que por acaso ali passava, dissuadiu o fedorento larápio de reagir, dando-lhe uma biqueirada de uma força tamanha que o homem deixou de cacarejar para passar a zurrar.

Já imaginou, caro leitor, se acontecesse o mesmo a todos aqueles que nos vêm aos bolsos buscar as nossas migalhas?

Jorge C. Chora

terça-feira, 2 de agosto de 2011

A senhora que não cabia na casa de banho

Pediu para ir à casa de banho mas ficou entalada entre a porta e a sanita. Gritou por socorro e foi socorrida. Ajudaram-na a desencaixar-se. Não foi tarefa fácil.

Riram-se à socapa os presentes. A senhora, agastada, virou-se para um enorme cavalheiro que também ali estava e desancou-o:

-De que se ri? Vá lá o senhor entrar, ou melhor, tentar entrar, e logo verá o que lhe acontece!

-Minha senhora, no meu caso foi preciso chamar os bombeiros. Só a persistência de uma bombeira é que me salvou.

-E pelo visto é hoje a sua esposa… -alvitrou a desencaixada.

-Como adivinhou?

-É que o meu também o é! São eles que têm jeito para os XXL…

-Perdão minha companheira de infortúnio. Não se culpabilize. A verdadeira culpa, a existir alguma, será do estabelecimento que devia ter afixado as medidas do WC à porta do mesmo ! ah e um aviso visível com os dizeres explícitos: Para raquíticos.

E saíram de braço dado, dando grandes gargalhadas, perante o espanto dos inúmeros “enfezados” que povoavam o local.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O preço da cobiça

No centro comercial, deu três voltas à balança, parou e olhou em redor. Observou o fundo do corredor, primeiro à esquerda e depois do outro lado. Deu ainda mais duas voltas e hesitou. Colocou um pé em cima dela mas logo recuou. Subiu de novo mas desceu de imediato.

A funcionária da loja, mesmo em frente, assomou à porta e entabulou conversa:

-Parece estar com um certo receio de se pesar…

-Sim …o peso é muito e …

-Olhe, a senhora tem uns sapatos que me parecem bastante grandes e pesados…pode pesar-se descalça que sempre ajuda… -interrompeu-a a funcionária.

-Os sapatos? Pode ter a certeza que os descalço. Já não trouxe a” lingerie” vestida para evitar mais uns gramas…

-Então porque continua a hesitar?

-Eu queria ver se não passava ninguém e podia pesar-me sem o vestido!

-Mas ficava nua… - espantou-se a balconista.

Nesse momento, o dono da loja, de olho arregalado e sem perder pitada da conversa, bichanou à sua empregada:

-Diz-lhe que a área está deserta… agora. Vá depressa… - e escondeu-se estrategicamente atrás do balcão.

-Sim, senhor Zeca – e colocou-se em frente à mulher, enquanto ela, com toda a calma, se despia e se pesava.

O proprietário, sem nada conseguir ver, ia dando pequenos pulos e exclamando:

-Me ..da… me..da…assim não vale Florinda…sai da frente…

E no meio da sua desilusão, furioso, engasgava-se, mas ia apelando com a voz sumida:

-Sai da frente Florinda…

-Tenha calma senhor Zeca… ainda tem um ataque e eu vejo-me obrigada a dar-lhe a respiração boca a boca…

E o proprietário, só de imaginar a cena, suplicou-lhe, aflito, a cambalear:

-Ai que eu morro Florinda…

Florinda não esteve com meias medidas: pegou nele ao colo e só por um triz não o sufocou com o beijo que lhe deu.

A primeira decisão que Florinda tomou após o seu casamento com o Zeca, foi mandar tirar a balança que estava em frente à loja; a segunda e a terceira foram tomadas em simultâneo: Ter sempre o pau de metro à mão de semear e o afogueado marido sob vigilância.

Quando ela o aperta, ele só consegue balbuciar:

-Ai que eu morro…


Jorge C. Chora

sábado, 2 de julho de 2011

Receber a reforma faz mal à saúde

O frenesim das sirenes escutava-se ao longe. Segundos depois, em plena avenida, os sons estridentes rasgaram a relativa pacatez da avenida. Potentes motas, conduzidas por experientes batedores, engoliam quilómetros, precedidas por oito viaturas topo de gama.

Às vinte e três horas em ponto, os portões do nº 13 abriram-se por breves momentos. Uma chiadeira de pneus e um cheiro a borracha queimada espalharam-se pelo ambiente. As viaturas foram como que engolidas e os portões fecharam-se, impedindo qualquer visão para o interior.

A reunião estava aprazada para daí a quinze minutos. Os dirigentes tomaram assento e procedeu-se à leitura do único ponto da ordem de trabalhos:

”Em tempo de crise, como poupar dinheiro com as reformas dos velhos e quejandos?”

A discussão iniciou-se. Havia um acordo prévio quanto à premência do problema. Tratava-se agora de definir a estratégia que levasse a uma redução drástica das mesmas.

Foram várias as ideias apresentadas, todas elas já ventiladas, como sejam as de só assegurarem uma parte pelo estado e a outra pelos negócios privados, a existência de limites…enfim o “dejá vue”.

-“Adelante …Adelante… “ – comandava o dirigente-mor, ansioso para que surgisse algo de novo, tentando apressar a discussão, revelando a impaciência herdada de uma longínqua bisavó castelhana.

-Se me permitem… - iniciou um jovem dirigente – fungando e aclarando a voz.

-Permitimos tudo. Desembuche e deixe-se de salamaleques. – cortou o bisneto da espanhola.

-Então digo… a estratégia é conseguirmos convencer o “povo” de que receber uma reforma faz mal à saúde das pessoas…

-Como assim?- questionaram interessados os presentes – convencermos a população de que a atitude correcta e mais saudável é não receber nenhuma reforma?

-Exactamente isso. Divulgarmos quantos morrem logo que se reformam… iniciarmos uma campanha…

Uma ovação impediu o orador de continuar. A estratégia,”grosso modo”, estava achada. A assembleia propôs que o autor da ideia fosse louvado e premiado com três reformas vitalícias que vigorassem de imediato: A primeira ser-lhe-ia atribuída pela originalidade da ideia; a segunda pela poupança que iria desencadear; a terceira pelo fomento de uma política social saudável.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Olho Vivo

A velha viatura enlameada travou no meio da praça da aldeia provocando uma grande nuvem de poeira. Do seu interior saíram quatro homens que olharam em redor, com cara de poucos amigos. Um vinha engravatado e os outros trataram-no por senhor engenheiro.
O engenheiro desatou aos berros, exigindo rapidez e mostrando pressa:

-Despachem-se…não temos o dia todo…tirem o material e vamos começar as medições…

Um saco de lona verde foi aberto e do seu interior foram retirados fios-de-prumo, um grande tripé e uma enorme régua e outros objectos. Dois dos funcionários e o chefe seguiram na direcção dos campos. O outro trabalhador, transportando um garrafão vazio de vidro transparente, encaminhou-se para a taberna local.

Ao entrar no estabelecimento cumprimentou os presentes, pediu que lhe enchessem o garrafão com vinho tinto e sentou-se a uma mesa num canto da sala. Os aldeões acorreram ao local e em minutos lotaram-no.

-Afinal que trabalhos é que vêm cá fazer?- interrogou-o um dos idosos recém-chegados.

-Vamos construir uma estrada. Ela vai atravessar a aldeia… por ali mais ou menos … -e apontava vagamente para uma grande área, onde estavam terras cultivadas - mas quem ainda vai decidir é o engenheiro…

-Mas então… vão estragar-nos as nossas propriedades… - comentaram vários dos presentes.

-Bom… o sítio por onde passa nunca é definitivo… é sempre possível influenciar a decisão…não sei se percebem. Quem, como eu, se dá bem com o chefe…pode sempre mudar alguma coisa. Tudo depende de…não sei se estão a perceber…

Eles percebiam. Um a um foram-se chegando e avançando com o dinheiro que podiam. Ninguém queria ver as suas pequenas terras retalhadas.

Quando o bolso do jaquetão já estava bem gordo, o trabalhador despediu-se:

-Bom…vou andando…vou falar ao engenheiro…

Nesse preciso momento, o taberneiro aproximou-se e disse-lhe em voz baixa:

-Antes de sair chegue aqui ao cantinho do balcão…

Curioso, acedeu ao pedido do dono da casa. Estupefacto ouviu-o ordenar-lhe:

-Deixa aí metade dessa massa que recebeste…

-A que propósito? – reagiu, indignado.

E nesse preciso momento, a mulher do taberneiro gritou-lhe,furiosa, do outro topo do balcão:

-Ó Olho Vivo, deixa-te de conversas que há aqui clientes para aviar…

Ao ouvir este nome, estremeceu, pois estava perante o mestre de que o seu chefe,”o engenheiro”, não se cansava de falar…o criador do golpe que eles queriam dar.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 8 de junho de 2011

As ordens são para se cumprirem!

O calor era tanto que derretia o alcatrão. Sentia, à medida que circulava, os pneus da sua viatura colarem-se à estrada. Não havia vivalma e rolava de modo descontraído pela longa recta à sua frente. Ligou o rádio e sorriu ao pensar que tinha começado as suas curtas férias. Juntara, cêntimo a cêntimo, o dinheiro para aqueles dias no Algarve. O desemprego não lhe deixava margem para mais e tinha de se contentar com o que tinha.

Ocupada com os seus pensamentos, viu umas centenas de metros à sua frente, uma autoridade a fazer-lhe sinal de paragem. Olhou pelo retrovisor a ver se havia alguém que viesse atrás de si. Nada viu. Tornou a olhar e certificou-se que a ordem era para si. Um auto-stop no meio do deserto? interrogou-se.

-Bom dia senhor agente…

-Bom dia minha senhora. Faça o favor de me mostrar os documentos da viatura e os seus por favor… – e enquanto falava, perfilava-se e fazia-lhe a continência.

Verificados os documentos, aberta a bagageira, mostrado o colete e o triângulo, inspeccionados os seguros e os certificados, a condutora, à torreira do sol, completamente encharcada em suor, suspirou e disse:

-Está tudo em ordem? Posso seguir a minha viagem?

-Só depois de pagar a multa…sabe que cometeu uma infracção grave!

-Multa? Infracção grave? De que é que está a falar senhor agente? - questionou-o, espantada, a condutora.

-Sabe a que velocidade vinha senhora condutora?

-Claro! A noventa, noventa e poucos…

-Confirmo. Vinha a noventa. Sabe que está numa localidade?

-Numa localidade? Só há uma casa…!

-Pois veja o sinal que ali está. – e apontou o malfadado sinal, que mal se via mas estava de facto lá.

Pagou trezentos euros de multa, inverteu a marcha e regressou a casa, sem férias e sem dinheiro. Uma raiva surda apoderou-se de si e desejou que todo o mal do mundo acontecesse ao homem. Nesse momento um pneu da sua viatura rebentou. Logo de seguida desabou uma chuva tropical.

No seu posto de vigília, molhado até ao tutano, o guarda resmungava:

-Num sítio onde não passa ninguém, ia lá perder a oportunidade de mostrar ao chefe que até no deserto cumpro a minha função!

E ia sacudindo as pernas a ver se conseguia livrar-se do verdadeiro oceano que lhe inundava as botas.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Visitas incómodas

Aos primeiros sons de passos, espreitava pelo óculo da sua casa. Caso a visita fosse indesejável, nomeadamente o senhorio, estalava os dedos e dois dos seus filhos, entre os que estivessem mais próximos, corriam à procura dos penicos e instalavam-se junto à entrada.

Ainda não tinham tocado à porta e já eles gemiam que nem uns desalmados, como se estivessem no auge do esforço requerido ao acto. Seguiam-se sons de alívio directamente proporcionais ao esforço dispendido, sincronizados com a lenta abertura da porta. Ainda esta não abrira e já cá de fora se ouviam rogos de desculpas:

-Peço mil perdões…voltarei numa outra altura…

-Se não for incómodo… - respondia sorridente o inquilino.

Passaram-se algumas semanas e a cena continuou a repetir-se. Meses depois o inquilino precisou de falar com o proprietário, devido a uma verdadeira catadupa de avarias.

Quando subia as escadas da casa do proprietário, ouviu uma verdadeira correria no interior da mesma. Ainda não tocara à campainha, quando uma onda sonora, em tudo semelhante à que os seus filhos faziam, o envolveu.
Suspendeu o gesto de tocar e preparava-se para se ir embora, quando a porta se abriu.

-Faça o favor de entrar … -convidou-o o proprietário.

-O inquilino ia morrendo com o cheiro pavoroso. De olhos arregalados, em vez de dois penicos viu dez e, contrariamente aos seus, estes transbordavam…

-Peço-lhe mil desculpas…a casa de banho da minha casa precisa de reparações, mas estou à espera que me paguem as rendas em atraso … - desculpou-se o proprietário com ar inocente.

-Escusava era de levar tão longe o ensinamento… - balbuciou o inquilino,asfixiado, apertando o nariz.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A quem o diz!

Olhou, remirou e depois afastou-se um pouco da prateleira onde estava o que queria comprar. Tornou a aproximar-se, pegou no artigo, sopesou-o, avaliando-lhe a forma, a cor, deixando de lado o sabor e o cheiro em virtude do produto ser enfrascado.

Atrás do balcão, a vendedora reparou nos gestos meticulosos da cliente. Aproximou-se, cumprimentou-a e iniciou a conversa:

-Também é do ramo?

-Nota-se à légua não é!

-É verdade, só quem ama a nossa profissão. Hoje em dia as pessoas não amam o trabalho. Gostam só do dinheiro…

-Tem toda a razão. Dinheiro, pouco trabalho, muito descanso… - assentiu a colega cliente.

-O mundo está perdido! – exclamaram em uníssono.

Conversaram mais de meia hora. Encaixavam-se uma na outra na perfeição. Se fossem gémeas não seriam tão parecidas. Concluíram que os funcionários nos primeiros vinte anos de trabalho deveriam ser pagos ao nível do salário mínimo e só depois, pequenos aumentos…caso fossem merecidos. Caíram nos braços uma da outra:

-Cara amiga, considere-se contratada!- gritaram em êxtase uma à outra, sonhando ter nas sua lojas, pelo menos uma empregada como aquela que tinham acabado de conhecer.

-Cruzes canhoto! Livra! - desabafaram surpreendidas, quando finalmente descobriram o que ambas realmente queriam uma da outra.


Jorge C. Chora

domingo, 8 de maio de 2011

Com ele virado para a Lua

Assobiava com uma alegria contagiante. Era o dia em que faria um brilharete e mataria dois coelhos de uma só cajadada. No casaco, no bolso do lado direito, trazia o tesouro que espantaria os amigos e, principalmente, a namorada. Sempre a tinha conseguido surpreender, pelo menos até agora, por poucos ou nenhuns esforços que fizesse e mais trapalhices que levasse a cabo.

Ao chegar junto ao grupo de amigos, onde se encontrava aquela que ele mais desejava agradar, juntou as mãos e, tal qual um mago, fez aparecer dois pedaços de papel que desdobrou fazendo render o peixe e prendendo a atenção do grupo:

-Quem adivinha o que trago aqui?

-Talvez mais um pouco de sorte… - arriscaram dois dos presentes, com um mau humor evidente.

Para evitar que algo de desagradável sucedesse, e as invejas despertassem , resolveu apressar a novidade:

-Tenho reservas de hotel para este fim-de-semana…

-E então onde está a novidade? - surpreenderam-se os presentes, incluindo a noiva.

-Está no preço e na qualidade do hotel… disse – mostrando as reservas e sublinhando o preço, muito baixo.

-Só quatro euros por pessoa? Hum…aí há gato… - comentaram.

Com ou sem gato, a viagem realizou-se. Chegaram ao luxuoso hotel após quatro horas de uma atribulada jornada. Ao transporem a porta de entrada, foram envolvidos num ambiente fresco e perfumado.

Dirigiram-se à recepção e apresentaram a documentação. Os funcionários olharam-nos com um misto de surpresa e curiosidade. Repararam que os recepcionistas observavam o espaço em seu redor como se eles se tivessem esquecido de ter trazido algo.
Aborrecidos com a insistência dos olhares, perguntaram-lhes o que se passava.

-É que estamos à procura dos cães…

-Dos cães? Quais cães? – surpreendeu-se o casal.

-As reservas que têm são uma promoção para animais de companhia. Estamos a inaugurar esse serviço!

-Mau… fazes tudo no ar…alguma vez tinhas de te sair mal… - balbuciou a noiva, repreendendo-o e mal querendo acreditar no que se estava a passar.

-Não foi por mal…foi com a melhor das intenções – tentou defender-se o jovem a quem a sorte abandonara.

A jovem directora, ao ver a atrapalhação do casal sorriu-lhes, piscou-lhes o olho disse-lhes:

-Mas não há problema, porque oferecemos, excepcionalmente, a estadia ao primeiro casal que passasse o fim-de-semana connosco e comprasse o novo serviço!

-Bem diz a minha mãezinha que nasci com ele virado para a lua! - concluiu o noivo aliviado.

Jorge C.Chora

domingo, 1 de maio de 2011

A revolta da catatua

A barriga tremia-lhe com os ataques de riso, empurrando a mesa e fazendo rodopiar e dançar os copos. Expelia baforadas de fumo fedorento no intervalo das risadas. O cão e a catatua, bem ao seu lado, fungavam, tentando esquivar-se às nuvens asfixiantes que lhes acertavam em cheio. O cão, zonzo, cambaleava e ficava em tal estado que mais parecia miar do que latir. A catatua, essa, tão desgraçada ficava, que emitia sons não identificados que pouco a pouco se tornavam audíveis:

-turr...truu...turr...

O dono, morto de riso, dizia aos urros:

-Ela julga que é uma rola! - e dava murros na mesa, fazendo os copos saltar como se fossem formigas.

-E se tu continuares a fumar essa cangalhada e a beberes essa zurrapa, ainda te transformas em qualquer coisa estranha… - advertiram os amigos.

-Deixem-no beber e fumar porque assim paga impostos até se fartar…quanto mais pagar melhor para nós…deixa-nos mais aliviados – concluiu um dos presentes.

- Glu,glu ….glu … A bebida sou eu que a faço no fundo do quintal…o tabaco é da candonga…. ! – desdenhou trocista.

Os amigos ao ouvirem-no rir ficaram estarrecidos. Aquele som gutural era parecido com… não sabiam bem… um bicharoco qualquer…

Um bando de gaiatos que saía da loja de doces mesmo ao lado, chamando-se uns aos outros pelas alcunhas, gritou bem junto ao portão:

-Olha Peru Velho…

Mal o grito foi proferido, o dono da catatua levanta-se instintivamente, corre para o portão, flecte as pernas e responde ao chamado:

-Glu…glu…glu…

Nesse momento o cão voltou a ladrar e a catatua começou a berrar sem cessar:

-Peru velho…peru velho…

O dono, obediente, apoiando-se ora numa perna ora na outra, ia saltitando e reagindo de pronto:

-Glu…glu…glu

Há quem jure que ouviu o cão rir-se.

Jorge C. Chora

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Não diga a ninguém...

Saltava no meio da multidão que aplaudia o chefe. Abanava-se, num frenesim, vivendo a apoteose como se ela se destinasse a si próprio. Sentia que um dia podia chegar longe. Argumentos não lhe faltavam. Aprendera a liderar assembleias. Exímio a cortar a palavra a quem incomodava, a desviar assuntos incómodos, a convocar reuniões às ocultas, tornou-se indispensável a quem mandava. A todo esse capital de artimanhas, somava uma boa presença e uma lábia incomensurável. Foi subindo, chegou a um lugar de destaque de uma instituição, infiltrou-se nas autarquias, transformou-se numa pessoa mais ou menos grada mas nunca o deixaram chegar a figura de primeiríssimo plano. Recebeu milhares de euros a que por descaso, ganância, quiçá incompetência, foram sumindo e nunca foram devolvidos a quem lhe pediu reembolsos. Nunca disse que não pagava mas nunca pagou. Desapareceu de circulação.

No meio da festarola dos apaniguados, um credor viu-o aos saltos. Gritou que nem um desalmado mas o barulho impediu-o de ser escutado. Furou pelo meio da multidão. Deu cotoveladas à esquerda e à direita, foi empurrado e empurrou, finalmente chegou ao pé do almejado e não esteve com meias medidas:

- Onde está o meu dinheiro?

-Calma…não o tenho aqui…

-Quando é que me paga o que me deve a mim e aos meus familiares?

-Bom…é que eu não sou o responsável…

Antes que a situação se descontrolasse, o credor contou até dez, respirou fundo, encheu-se de paciência e perguntou:

-Qual é a treta que me vai querer impingir desta vez?

-Acredite ou não, vou dar-lhe a morada do responsável. Está na campa 72…

Nesta fase da”explicação” o credor ponderou seriamente em deixá-lo sem dentes. Apercebendo-se disso o prestidigitador retomou a palavra:

-Sim, morreu e está na campa 72. Ele é o único culpado da situação, se quiser pode…

-Falar com ele? – interrompeu-o, furioso, o credor.

-Sim…tenho uma amiga que é médium …diga-lhe que vai da minha parte…mas não diga a mais ninguém…

Jorge C. Chora

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Ai mano velho!

Após um dia de trabalho insano, já quase à porta de casa, depara com uma senhora com aspecto tão cansado como o dele. Ela faz-lhe sinais para parar. Hesita mas resolve praticar a boa acção do dia e pára o carro.

-Em que posso ajudá-la minha senhora?

-A paragem de autocarros é longe?

-Não … é relativamente perto…

-Se me levasse lá… - suplica-lhe com um ar de cachorrinha abandonada.

Condói-se a boa alma, não sem que antes tenha tentado esquivar-se, pois morava mesmo ali ao pé e não lhe dava jeito nenhum levá-la.

Pára no local indicado e deseja-lhe a continuação de uma boa tarde. A mulher lacrimeja, diz que está muito cansada e pede-lhe que a leve até casa, a um lugarejo que distava uns quilómetros dali.

O bom samaritano começa a aborrecer-se e por mais que insista ela não sai. Sente-se forçado a conduzi-la, perante as lágrimas que não cessam.
Quase a chegar ao destino a passageira desata a soluçar.

-Mas o que foi agora? - interroga-a, impaciente.

- É que preciso de medicamentos …só me faltam 5 euros…

Farto da situação puxa da carteira mas para seu azar só tinha uma nota de dez. Dá-lha.
Ela volta à carga:

-Também preciso de ir à padaria…se me desse…

O caldo entornou-se.

-Também quer que lhe vá fazer o jantar?

-Já agora…se for possível… - e sai, sem sombra de cansaço, em passo ligeiro, fresca que nem uma alface, lançando gritos que atroaram os ares:

-Iuu…iuu …iuuuu

E os burricos que estavam na pracinha, ao ouvirem os poderosos zurros, arrebitaram as orelhas e disseram para os seus botões:

-Ai mano velho… ela já te passou a perna!

Jorge C. Chora

terça-feira, 5 de abril de 2011

À procura de Afonso

São quinze horas e Manuela sai apressada do metro. Precisa de se dirigir, com urgência, à rua da Joaninha. Leva como missão contactar o sr. Afonso, pessoalmente. Não pode ser de outro modo. As instruções são rigorosas: entregar-lhe a documentação que leva, esperar que ele a analise e trazê-la assinada, se possível.

Desconhece a cidade mas sabe que é naquela estação que tem de sair. Calcula que seja fácil chegar à direcção que procura. O nome da rua é diferente do normal, toda a gente a deve conhecer por aquelas bandas. Tem cerca de uma hora para levar a bom termo o seu trabalho.

Aproxima-se da primeira pessoa com quem se cruza. Vai informar-se onde fica a rua que procura:

-A senhora dá-me … e fica com a pergunta a meio, porque ela se afasta como se estivesse na presença de uma leprosa numa fase terminal.

-O senhor dá-me… o senhor dá-me…por favor … - e um a seguir a outro, todos se afastam sem sequer a olharem, nem dizerem nada.

Começa a desesperar-se. Tinha passado a hora e não conseguira pura e simplesmente, uma reles informação. Entra num estabelecimento e não consegue melhor resultado:

-Tem de esperar pela sua vez… - e ela olha para a longa fila e sai.

De novo na rua, tropeça num homem apressado, que fedia a aguardente ordinária. Cai desamparada e os seus papéis espalham-se pelo chão.

-O senhor dá-me…

-Dou-te uma … - e dispara um chorrilho de asneiras e propostas infames, seguindo o seu caminho.

Levanta-se a custo, com os joelhos esfolados. Coloca as mãos nos rins e ajuda-se a endireitar, quando vê uma placa suja e gasta com o nome que procurava. Dá graças a Deus. Procura o número da porta e encontra-o com facilidade.

Entra pela luxuosa porta e encontra-se numa sala ampla, recheada de secretárias. Ao fundo, rodeado de funcionários, estava o homem que a derrubara, gritando com tudo e com todos e perante o qual todos se curvavam:

- Sim senhor Afonso…

-Será como ordena senhor Afonso…

-Como queira senhor Afonso…´

Manuela ficou estarrecida. O Afonso que procurava era aquele senhor arrogante e todo-poderoso. Tanto trabalho para encontrar o herdeiro de uma pequeníssima herança de uma idosa, tia-avó de Afonso, que ele nunca visitara em vida.

Retira-se. Já na rua, agarra no envelope destinado a Afonso e regista, a vermelho, em letras garrafais: Paradeiro desconhecido. Falecido?

Quem quiser que o descubra de novo, pensa Manuela com os seus botões.

Jorge C.Chora

sexta-feira, 1 de abril de 2011

A Amiga da Frederica

Havia algo de familiar na senhora que acabara de entrar na sala, embora não soubesse dizer bem o quê. Olhou-a e remirou-a de forma disfarçada mas continuou sem saber qual a particularidade que lhe chamava a atenção. Desistiu.

De repente o seu olhar tornou a procurar a senhora e fixou-se nas calças que ela trajava. O tecido era igualzinho ao do cortinado da sua sala. Aí estava a
malfadada familiaridade que o trazia confuso. Ela reparou no olhar fixo do cavalheiro, sorriu-lhe, passou a seu lado e disse-lhe:

- São iguais às cortinas da sua sala? – e agarrou com dois dedos as suas calças, puxando o tecido ligeiramente para o lado.

Assustou-se. Será que ela lhe tinha lido o pensamento? interrogou-se. Mal acabara de pensar nisso quando ela o tornou a surpreender:

-Está a pensar se eu li o seu pensamento? – e mostrou os seus dentinhos de autêntica fada sorridente.

Sentiu-se mal. O que lhe estava a acontecer saía do seu controlo. Ou ela lhe lia o seu pensamento ou ele era tão transparente que qualquer um o lia.

-Esteja descansado, o senhor não é tão transparente que qualquer consiga ler o que pensa! – declarou, transbordando simpatia.

Cada vez mais surpreso, incapaz de raciocinar e de falar, apoderou-se de si a indesejável gaguez dos momentos difíceis, que o faziam passar por maus momentos:

-Pe…pe …ço-lhe desculpa por…por…

-Não se atemorize… A sua esposa não se chama Frederica?

Ao ouvir o nome da esposa pronunciado pela desconhecida, temeu o pior. Estava perante quem? Nunca acreditara em bruxas, mas agora estava como os castelhanos”…mas que as há, há…”

A senhora avançou, determinada, na sua direcção , beijou-o em ambas as faces e tratou-o pelo nome:

-Esteja descansado senhor João…se bem me lembro é assim que se chama…

O homem ficou pálido, para logo de seguida ficar da cor de um tomate maduro ao ouvir o seu nome.Preparou-se para tudo.Que desfeita teria feito?O mais engraçado é que nem se recordava do seu nome,nem da cara,nem...

-É que eu e a sua esposa encontrámo-nos quando comprámos o mesmo tecido, na mesma loja. Achámos graça ao facto de eu querer o tecido para umas calças e ela para umas cortinas. Ao aprofundarmos a conversa, descobrimos que fomos colegas da escola primária e trocámos informações …

-Uf! – exclamou João, retribuindo os beijos à amiga da Frederica.

Jorge C. Chora

quinta-feira, 17 de março de 2011

O homem que fazia tudo bem e depressa

Gabava-se de fazer tudo depressa e bem. Ninguém o vira fazer fosse o que fosse e muito menos depressa. Quando o interrogavam sobre essa sua afirmação, sorria e dizia:

-Então não sabem que depressa e bem não há quem!

-Mau, então por que continua a dizer que faz tudo depressa e bem?

-Porque o faço em pensamento!

-Mas isso não vale! É batota! – reclamavam os ouvintes.

-Por isso me chamam …

- Aldrabão? batoteiro?… - alvitraram.

Os ouvintes olharam-no ainda mais desconfiados quando o viram iniciar a subida dos degraus da igreja.

-O que é que ele vai fazer? – interrogaram-se, surpresos, ao vê-lo entrar no templo.

Três minutos e alguns segundos depois, cronometrados pelo “Bigodes”, o mais intrigado dos espectadores, saiu ligeiro, em passo atlético ,o homem que fazia tudo bem e depressa.

-Foi confessar-se? Tão depressa? – questionaram-no os curiosos que o aguardavam.

-Não, fui rezar e se acham que foi pouco tempo, fiquem sabendo que ofereci ao Senhor nada mais, nada menos, do que noventa orações…

-Noventa orações em três minutos? – espantaram-se os presentes.

-Claro! Éramos trinta crentes, contando comigo, e rezámos três Avé Marias cada um… o que perfaz uma oferta de noventa orações em tempo recorde. A conta está certa!

Jorge C. Chora

terça-feira, 8 de março de 2011

Falta colectiva

Perdera o conto aos anos que tinha. Eram tantos que resolveu imitar a sua falecida mulher e respectivas amigas: começou a contá-los para trás. Ainda assim estava nos setenta e cinco anos.

A família estava surpresa com a vontade, por ele manifestada, de se inscrever na Universidade da 3ª idade. Nunca quisera saber de estudos, leituras e outras “esquisitices”desse calibre, como costumava dizer.

O mistério durou semanas e intrigou os familiares de imensos idosos. Assistiam a uma espécie de febre cognitiva tardia, que grassou como uma epidemia, fortalecendo as vontades serôdias de mergulhar na cultura, bebê-la, vivenciá-la.

Espanto dos espantos, foi logo aproveitado pelos filhos para apontar os avós como exemplo de estudo, da valia dos mesmos, independentemente da idade.

No dia da abertura das aulas, a turma dos mais idosos compareceu em peso. Trinta avôs e alguns bisavôs, à hora exacta, estavam à porta da sala esperando a professora. No fim do corredor surgiu uma mulher altíssima, de uma elegância a toda a prova, de cerca de cinquenta anos, trajando um vestido que pedia meças a Dior, Balenciaga ou qualquer outro costureiro da mesma craveira.

-Bom dia senhora professora – cumprimentaram jovialmente os seus alunos.
-Bom dia meus senhores – retribuiu a professora, sorrindo de um modo agradabilíssimo à receptiva assistência, enquanto pedia que os alunos fizessem o favor de se sentarem.

Acomodada a turma, a professora iniciou a apresentação:

-Venho dar-vos a boas vindas e comunicar-vos que a minha mãe, por motivos de organização de horários, será a vossa professora.

No dia seguinte, à hora aprazada, só a mestra compareceu. Uma hora depois ,olhou para o relógio e exclamou, furiosa:

-Falta colectiva!

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de março de 2011

O fim do jasmineiro

À medida que ia anoitecendo, um cheiro pastoso, pesado, adocicado, foi-se libertando do jasmineiro. Gotas de suor escorriam-lhe da testa, por mais que a limpasse. Não se sentia bem e o cheiro fazia com que se sentisse pior. Um enjoo crescente foi-se apoderando de si. O calor e o cheiro tornaram-se insuportáveis. No verão era sempre assim. Quase uma agonia.

Esse Verão estava a ser o pior de todos. A agravar o seu mal-estar estava a visão que tivera ao ver a bela Sereia, era assim que designava a mulher que lhe surgia em sonhos, sentada numa esplanada da rua de Santo António, em pleno centro da cidade.

Tantas vezes sonhara com aquela mulher. A visão estava em definitivo remetida para o arquivo da imaginação, do delírio, do irreal, da máxima utopia. Foi num dia ensolarado que a viu. Reclinada na cadeira com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa, com a cabeça inclinada para trás e os longos cabelos encaracolados caiando-lhe em cascata, reluzindo ao sol.

Extasiado, parou a observá-la. Nada, mas absolutamente nada lhe desagradava naquela mulher. Os olhos redondos e verdes, o bronzeado delicado, o modo como gesticulava, o riso contido, intercalado com um sorriso de outro mundo. Estava acompanhada por outra mulher, mas nem sequer reparou nela. De repente passou-lhe em frente um numeroso grupo de turistas. Quando acabaram de passar, o objecto da sua contemplação desaparecera.

Em pânico percorreu a rua de um topo a outro. Cortou pelas transversais e tornou ao mesmo local, um sem número de vezes. Esfumara-se.

A partir daí, o calor tornara-se mais feroz e o cheiro ainda pior. A sua visão, o seu sonho, esfarelaram-se perante os seus olhos sem dó nem piedade .Era atroz só de pensar, quanto mais sabendo que ela existia e desaparecera assim, sem mais nem menos da sua vida. Ficara sem saber rigorosamente nada dela.
Sabia que existia, que afinal o sonho era uma realidade palpável.

Naquele entardecer, sentado à varanda, nauseado pelo maldito calor e o fedorento perfume a jasmim, o coração parou de bater. Viu aproximar-se do muro do seu jardim, a Sereia, num passo elegante e rápido. Tremeu de emoção. Não perderia a oportunidade de entabular um diálogo, estabelecer um contacto, de iniciar uma relação que aprofundaria até ao âmago do seu ser.

Levantou-se da varanda e aproximou-se do lado esquerdo do muro, ao mesmo tempo que a Sereia, sem o ver, levantava de um modo suave a sua pequena saia à frente, agarrava no seu pénis e urinava no jasmineiro.

No dia seguinte o nosso sonhador mandou cortar o jasmineiro.

Jorge C. Chora

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Maldito piano

As lágrimas corriam-lhe pela cara. Soluçava e pedia batendo o pé:

-Quero um piano… eu quero – e repetia até à exaustão a sua exigência.

A progenitora explicou-lhe que aquele pedido, por muito que gostasse de o satisfazer lhe era, na prática, quase impossível de concretizar.

A menina passou a exigir-lhe aos gritos e, logo a seguir, aos guinchos, a sua pretensão. Armou-se de uma paciência infinita, daquela que só as mães são capazes.

O tempo foi passando e as birras para obter o malfadado piano foram-se intensificando de tal modo, que a mãe fez um esforço sobre-humano e lhe comprou o instrumento. Como um problema nunca vem só, logo surgiu outro: de que servia o piano sem ter aulas adequadas?
Fez das tripas coração e pagou ao seu rebento as aulas.

A filha depressa se cansou da disciplina e se saturou do trabalho necessário à aprendizagem:

-Já não quero mais…não quero mais…estou farta, fartíssima da música, do piano …
A mãe franziu o sobrolho, foi buscar uma cadeira, sentou-se e começou a gritar sem cessar:

-Eu quero ouvir-te tocar piano… quero ouvir-te tocar piano…

Ao fim de um tempo a menina começou a tocar. Tocou e tocou, mas tão mal, tão mal que os cães e os gatos da vizinhança ladraram e miaram até caírem para o lado devido ao cansaço. A cena repetiu-se todos os dias, e a menina fazia de propósito e tocava, tocava até os cães desfalecerem.

Um dia bateram-lhes à porta. Eram quatro colegas do bairro que vinham pedir autorização para assistirem aos ensaios.
A mãe sentiu-se inchada. A sua linda até atraia as amigas lá a casa!
Enquanto foi preparar um refresco às amigas e as deixou a sós, elas levantaram-se, cercaram a pianista e disseram-lhe:

-Olha, estamos aqui de castigo… se voltas a fingir que não sabes… e nos dás cabo dos ouvidos … - e ainda a ameaça ia no ar e já estava realizada ,com duas de um lado e duas do outro a puxarem-lhe as tranças.

Quando a bandeja dos refrescos apareceu já uma música celestial ecoava pela sala. Ao notar que a filha lacrimejava e ao interrogá-la sobre o facto ouviu as suas amigas:

-São lágrimas de satisfação por estarmos aqui!

A partir desse dia os gatos nunca mais miaram.

Jorge C. Chora

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O bolso do cão

Depois da conversa posta em dia, dos medicamentos aviados, de todos os conselhos pedidos e satisfeitos, da conta feita, chegou o momento de pagar.

-Querem lá ver… não tenho aqui dinheiro…não sei o que fiz à carteira! E agora? – e a senhora rebuscava os seus bolsos e a mala, sem sucesso.

Calmamente diz-lhe o ajudante da farmácia que a atendia, em tom de brincadeira:

-Deixe lá minha senhora, não se preocupe, não há qualquer problema…não leva os medicamentos e está resolvida a situação…

A senhora nem o ouviu, ocupada na sua busca infrutífera.

O ajudante espreita por cima do balcão, na direcção do pequeno e velho cão que a cliente trazia à trela e volta à carga:

-Minha senhora já procurou no bolso do cão?

-Que disparate…não brinque que isto é sério!

Nesse preciso momento o cão, que estava de costas para o balcão, volta-se e mostra a carteira que tinha presa na boca.

-“Queriducho”, vales mais do que uns e outros… -e quase fulminava o interlocutor com o olhar, sem que este sequer se apercebesse, perdido de riso como estava.

Ainda o cão não tinha transposto a porta, quando estanca, volta-se para trás e pisca o olho ao ajudante que se engasgou e do riso passou a tossir desalmadamente.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A boina e a panela

Deixava que apagassem a luz da enfermaria e abria de modo silencioso a gaveta da mesa-de-cabeceira. Palpava o seu interior, evitando fazer o mínimo barulho. Depois de encontrar o que desejava, puxava muito devagar o objecto, antegozando o prazer que ia ter ao usufrui-lo. Colocava na sua cabeça a gigantesca boina basca e suspirava, esquecendo-se das dores que o prendiam à maldita cama. Imaginava-se a circular no seu pomar e na horta, degustando os frutos e colhendo os legumes.

Um dia acenderam a luz de modo repentino e todos o viram de boina e com um grande sorriso nos lábios. Olharam-no de soslaio. Questionaram-se sobre a sanidade mental do homem: um tarado, coitado!

Perdido por um, perdido por mil! Assim pensou e decidiu o homem da boina, passando a usá-la em pleno dia, perante o espanto dos outros doentes.

Aos poucos os colegas de infortúnio foram-se habituando à ideia e surgiram pedidos que confundiram as famílias. Hoje, de manhã, os familiares reuniram-se, aflitos, no gabinete do director:

-Veja bem, senhor director, que o meu marido quer que lhe traga uma panela! Uma panela…

-E o meu, a cana de pesca!

-E o meu, nem imagina, não sei se digo…

-Diga, diga… - insistiram curiosas as queixosas.

- O meu perfume! Louvado seja Deus…

-Não se preocupem minhas senhoras…eu próprio quando visito essa enfermaria levo o meu chapéu de praia!

-Deus nos acuda! – exclamaram, enquanto se entreolhavam e saiam apressadas do gabinete, sem olharem para trás um único segundo.

Jorge C. Chora

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O pedinchão

Os olhos percorriam as redondezas sem parar. O que procuravam? Qualquer coisa, qualquer pessoa, tudo o que se mexesse e lhe pudesse dar fosse o que fosse. Pedia tudo, queria tudo, desde que não lhe custasse nada, nem um cêntimo ou um quarto de cêntimo, se esta moeda existisse. Estava longe de ser pobre: era um dos dez mais ricos da terra.

Viu o grupo do Zé Pagode ao longe e verificou em que direcção ia. Viraram à esquerda. O rumo agradou-lhe. Apressou-se para conseguir ainda apanhá-los a entrar para a baiuca. Comeu e bebeu e esgueirou-se antes de chegar a sua vez de pagar uma rodada.

O dia corria-lhe de feição. Avistou a meio da rua o novo médico da aldeia. A oportunidade era única para uma consulta à borla. Correu e conseguiu apanhá-lo.

O jovem clínico ouviu as queixas do paciente e pediu-lhe:

- Tenho de lhe observar a garganta. Encoste-se aqui à parede, levante o queixo, abra a boca, feche os olhos e vá dizendo: ááá…ááá…

Cumpriu à risca o que lhe foi ordenado. Alguns minutos depois ouviu risos e abriu os olhos. Do médico ninguém sequer soube dizer nada: esfumara-se e houve quem duvidasse da veracidade da afirmação de que o profissional de saúde ali estivera.

Atarantado com o que lhe sucedera, mais atarantado ficou ao saber pelos presentes quem era o novo João Semana:

-Ah! Foste bater à porta do sobrinho neto do Raposão!

Logo do Raposão! O único que nunca lhe pagara nada e ainda conseguira que ele lhe pagasse um copo! E pelos vistos este era pior do que o tio avô!

-Vade retro, Satanás! – exclamou com um ar ofendido o nosso pedinchão.

Jorge C. Chora

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Tobias

Mal a cabeça de Tobias assomou à porta, as conversas pararam no café. Todos os dias dizia ter uma profissão diferente. Que personalidade apresentaria hoje? A de cirurgião, de militar, polícia ou charlatão? A curiosidade fervilhava.

Tobias entrou com uma mão atrás das costas, barriga espetada, coçando o queixo, como se afagasse uma barba. Os presentes não perceberam qual o papel que assumira.

Pareceu-lhes, pelo ar altivo e sobranceiro com que olhava os clientes, uma espécie de…de…banqueiro.
Tentaram a sorte:

-Ó amigo…se o seu banco nos emprestasse algum dinheiro…

Olhou-os com um ar pensativo e acabou por anuir:

-É uma questão de negociarmos…de quanto precisam?

-Quaisquer cem mil euros chegam…

-Bom, então é só abrirem conta com cerca de duzentos mil. Faço-lhes uns juros à cabeça de 15% e nos primeiros seis meses pagam abaixo de 20%…melhor do que isto…
Entreolharam-se os “candidatos ao empréstimo” e retorquiram:

-Mau…nem mesmo um banqueiro negociava assim…quer dar-nos um chouriço em troca de uma vara de porcos!

-Têm toda a razão. Já fui banqueiro Agora sou só director-geral - e, com um ar abatido, dá meia volta e sai.

Jorge C. Chora

sábado, 8 de janeiro de 2011

O presente

A fila encaracolava, dava a volta à esquina e não andava. Perdão, era tão lenta que parecia parada. Três horas passadas e tinham sido atendidas cerca de quinze ou vinte pessoas.

Um tic, tic compassado de saltos altos, denunciou a presença da mesma dama que transitava pelo local pela quarta vez. Olhou de soslaio para a fila, como se de desgraçados se tratassem. Franziu o nariz e de repente, os olhos faiscaram-lhe. A fila tinha ganho vida. Começara a movimentar-se de um modo quase veloz e a desaparecer, como que engolida, pelas portas do luxuoso edifício.

De súbito, a senhora mudou de direcção e introduziu-se nos primeiros lugares da fila. Atrás de si estava um senhor de meia-idade, que além de nada lhe dizer, lhe sorriu de modo acolhedor. Olhou-o de soslaio e achou-o meio parvo. Ficara à sua frente e ele ainda a tratava como se ela estivesse a usufruir de um direito…. Agora só faltava ficar-lhe com o último brinde, haver para ela e nada para ele…então é que seria o bom e o bonito…

Foi recebida de modo caloroso por três senhoras:

-Bem-vinda à nossa organização. Neste momento estamos a precisar de completar a brigada de limpeza. Faça o favor de passar para a mesa da direita para receber o balde e a esfregona. O seu chefe vem mesmo aqui, atrás de si, e já a vai integrar…

E o senhor da simpatia inexcedível deu-lhe, de novo, a primazia:

-Vou tratar de si com todo o carinho. Como se chama Vexa?

Jorge C. Chora

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Uma homenagem de sucesso

O seu andar assemelhava-se ao de um balão a quem retiravam o ar. Progredia aos saltos, a uma velocidade irregular. O pior era a sonoridade que acompanhava o seu problema de flatulência. Era uma autêntica metralha, só comparável aos ataques alemães da 1ª guerra.

A princípio incomodava-o imenso o problema de saúde e as suas consequências sociais. Depois, foi conseguindo um controlo maior, até porque se formara em medicina. Passou, com a idade, a conviver muito bem com o seu mal e adoptou um modo peculiar de avisar os incautos do que ia acontecer ou do que já acontecera, anunciando:

-Fora com quem não paga a renda! Rua, rua….rua…

- Valha-nos Stª Bárbara! – exclamavam apavorados, olhando para o céu à espera da queda dos obuses, aqueles que ainda não o conheciam.

Depois de o conhecerem limitavam-se a enumerar:

-E vão sete…oito….dez…

E a vida correu sem qualquer alteração, calçada abaixo, calçada acima, com a população a cruzar-se com o clínico, no percurso que este fazia entre a casa e o consultório, entrecortado por sonoridades e apelos a Stª Bárbara.

Um dia o homem morreu. Os seus conterrâneos discutiram a melhor forma de o homenagearem. Foram unânimes na decisão de lhe mandarem erigir um busto.

No dia da inauguração houve discursos e elogios. Ninguém bateu palmas porque sentiam que a cerimónia estava incompleta. Sem aviso prévio, desencadeou-se uma forte trovoada. A multidão, a uma só voz, clamou por Stª Bárbara. Seguiram-se fortes aplausos.

Nunca uma homenagem tivera tanto sucesso.

Jorge C. Chora

domingo, 2 de janeiro de 2011

Por quem é!

A saúde da avó preocupava-o. A teimosia era outra fonte de inquietação. Recusava-se a ir ao médico e a fazer análises. Para ela estava tudo sempre bem, embora fosse notório que isso, nos últimos tempos, não correspondia à verdade.

A muito custo, conseguiu que ela fizesse análises. Colocou de lado os pequenos tubos de análise que o laboratório lhe tinha facultado. Usou os grandes frascos a que estava habituada. O neto agradeceu a colaboração, depositou os recipientes numa bolsa elegante e dirigiu-se ao metro.

Enquanto esperava, colocou o saco entre as pernas e esperou. Sentiu algo de estranho. Olhou para onde o saco estava e não o viu: ele desaparecera. Mau, pensou, depois da trabalheira que tivera para convencer a familiar, não vinha nada a calhar…
Tornou a observar à volta e viu um cavalheiro a caminhar apressado em direcção às escadas, com a bagagem que era sua, na mão.

-Agarrem o ladrão do casaco aos quadrados - gritou apontando na sua direcção.

O vigilante que descia as escadas, lançou-lhe a mão e imobilizou-o.

-Olhe, simplesmente estou chocado com a sua atitude, não sei o que se está a passar! – protestou o cavalheiro, de modo agastado, olhando
para aquele pelintra de calças de ganga, vestido de modo vulgar, que tinha tido a ousadia de o interpelar daquele modo.

-Bom … - disse constrangido o jovem – é que esses frascos…

E o homem, dando uma rápida olhadela ao conteúdo, interrompeu-o:

-Os frascos são meus! Um tem licor de tangerina…

-E o outro?

-O outro, se quer que lhe diga, não me recordo, mas basta-me cheirá-lo e digo-lhe de imediato…

O jovem sorriu e concedeu-lhe o desejo:

-Por quem é! Faça o favor!

Jorge C. Chora

sábado, 1 de janeiro de 2011

Com os pés de fora

Acordou zangada.Com quem, com o quê? Não sabia. Pura e simplesmente acordou assim. Os da casa, pé ante pé, rasparam-se. Foi ao frigorífico e verificou que não havia quase nada.

A contra gosto foi ao supermercado. Teve de encher o carrinho para colmatar as falhas caseiras. Irritada foi-o empurrando, com brusquidão, até que este chocou, com estrondo, contra a caixa. À sua frente estavam alguns clientes que saltaram assustados. Gozou interiormente com o sucedido e acalmou-se um bocado. Foi enchendo com as suas compras o tapete rolante.

Quando chegou a vez de ser atendida, a jovem empregada olhou para a quantidade de produtos que a cliente tinha e, quase a medo, disse-lhe:

-Peço-lhe desculpa…esta caixa é destinada a quem tiver dez ou menos artigos…

-Essa agora…era o que me faltava…nunca me tinha acontecido… - e espumava de fúria.

Condescendente, a caixeira propôs-lhe uma solução:

-Vamos dividir as suas compras em grupos de dez e vai-os pagando, um a um, porque deste modo a caixa aceita o registo.

-Então tenho de pagar às parcelas …às pinguinhas?

-Sim, mas é preciso que as pessoas que estão atrás de si a autorizem…

-Mau… se eu estou primeiro do que elas… - interrompeu, sentindo a fúria crescer-lhe de novo.

A cliente logo atrás, apressou-se a dar-lhe o consentimento. A jovem funcionária, facturou os primeiros dez artigos.

Com um evidente mau humor e um sorriso sarcástico, a cliente retirou do fundo da sua carteira, uma enorme bolsa de pano. Abriu-a e foi despejando dezenas e dezenas de cêntimos enquanto ordenava:

-Vá fazendo as contas e pagando os lotes…

A jovem reprimiu uma gargalhada e respondeu-lhe:

-Agora é que eu não posso ajudá-la. Nesta caixa só se aceitam cartões de crédito ou de débito! – e apontou-lhe as regras escritas no letreiro.

Duas horas depois, a senhora continuava a recolher os cêntimos que espalhara pelo balcão, murmurando:

-Ora abóboras…ora abóboras…

Jorge C. Chora