quarta-feira, 24 de março de 2010

O "Peçonha"

Baixou ao hospital e foi um corrupio de médicos, enfermeiros e técnicos ao seu redor. Ninguém sabia o que o homem tinha. Convocaram-se especialistas que nem ao diabo lembrava… e nada. Em desespero de causa, e à socapa das múltiplas direcções de serviço, chamaram uma bruxa, amiga da empregada da limpeza.

-Não consigo descobrir nada! Vejo tudo turvo…ele sabe o que tem e cala-se…coisa boa não é… - e convocou uma assembleia de amigas e colegas para a auxiliarem.

Calado que nem um rato, o homem não dizia, não disse nem diria o que se passara: simplesmente mordera a sua própria língua, que era tão peçonhenta ou tão pouco, que o envenenara de modo brutal e incompreensível para a comunidade médica.

Aflitos com a evolução dos sintomas contraditórios que apresentava, que apareciam e desapareciam num abrir e fechar de olhos, acharam por bem chamar algum familiar ou conhecido que pudesse dar pormenores, sintetizar a história clínica, dizer algo que os ajudasse a diagnosticá-lo e consequentemente a tratá-lo.

Já conformados com a impossibilidade de o curarem, levantaram as mãos ao céu, quando o maqueiro entrou e exclamou:

-Olha o Peçonha! O que é que te aconteceu ó má-língua do diabo? Não me digas que mordeste a tua língua venenosa…

O especialista em venenos exclamou:

- Eureka! É mesmo isso, o homem está envenenado! Quase que se ouve o som da cascavel …
O maqueiro, que conhecia o Peçonha de ginjeira, acalmou os presentes e disse:

-É fácil tratá-lo… é só fazerem-lhe umas perguntas…

-Perguntas? Mas que perguntas? - Interrogaram-se os presentes.

-Quaisquer…desde que ele liberte o veneno…

E os presentes cada vez mais desconfiados, cruzaram os braços e esperaram pela intervenção do maqueiro que não se fez rogado:

-O que achas de Beethoven?

-O que se pode esperar de um compositor cujo nome significa “canteiro de rabanetes”?

-Canteiro de rabanetes?

-Sim…em holandês… é mesmo isso o que significa, por isso só pode ser um compositor de 2ª categoria…

-O Ferrari é um dos melhores automóveis da actualidade…

-Um carrito de trazer por casa…

E perante o espanto da assistência, o Peçonha recobrou as cores, levantou-se da cama
e saiu como se nada tivesse acontecido.

O Peçonhas anda por aí…

Jorge C. Chora

sexta-feira, 19 de março de 2010

O Milionário

O “Milionário”cambaleava, de modo perigoso, até conseguir agarrar-se ao balcão da taberna. Ancorado, mantinha-se durante horas no seu posto. Ninguém sabia que idade tinha, ou qualquer outra informação pessoal a seu respeito. O que todos sabiam e podiam afiançar, é que ele sempre ali estivera. Talvez tivesse ali nascido, quiçá!

-O que sai hoje “Milionário? – perguntou-lhe o dono.

-O costume…

Um copo de bagaço e um croquete surgiram, como que por artes mágicas, à sua frente.

-Milionário? – Interrogou-o um recém-chegado que não era cliente da casa. – Já foi rico… empobreceu com a crise…

O visado sorriu, pigarreou, empertigou-se um pouco, endireitou a gola esfarrapada da camisa e disse:

-O que lhe posso dizer, com testemunhas, é que durmo todos os dias rodeado de tanto, mas tanto dinheiro, que acredito que V. Exa. nunca o terá, por muito rico que possa ser…

-Então é rico mas gosta de passar por pobre…com a criminalidade que existe hoje, nem é mal pensado…é uma excelente estratégia…

-Se assim fosse, eu era uma autêntica aberração…uma cavalgadura… passar por pobre, sendo rico…imaginem… - desabafou o vagabundo que dormia rodeado por uma fortuna incalculável, afastando e juntando os cotovelos ao corpo, como se fosse voar.

-Então não percebo nada! – Concluiu espantado o estranho.

-Vou explicar-lhe…não quero que fique com minhocas na cabeça… - e antecipando os segundos de fama, aclarou a voz, afectada pelas noites ao luar e pelos sonhos com as notas de euros.

Ainda não acabara a frase quando o gerente do banco ao lado da taberna, assomou à porta e disse:

-Ó Milionário, vai lá tirar o teu colchão da porta do banco porque está na hora de abrirmos…


Jorge C. Chora

segunda-feira, 15 de março de 2010

Esta malta não toma banho!

A dor de barriga apanhou-o a descer o beco. Parou. Sabia que dificilmente poderia progredir sem haver azar. Cruzou as pernas e apertou-se o mais que pôde. Conseguiu refrear o irrefreável. “Só mais um bocado, vou conseguir chegar a um café”, pensou.

Olhou em redor. Nada de cafés. Lembrou-se de que nem dinheiro trocado tinha para encomendar uma bebida. Só tinha uma maldita nota de cem euros. De relance ainda tentou recordar-se de alguma casa de banho pública no local. Depressa lhe veio à memória a sua oposição à construção desse tipo de edificação, desperdício de dinheiros públicos, segundo a sua opinião. Se o arrependimento matasse!

Que pena não poder recuar, por artes mágicas, uns séculos atrás que era ali mesmo que se aliviaria. Era um” passar vento “! A necessidade tornou-se ainda maior e obrigou-o a desapertar o botão das calças. No princípio das escadas surgiram três transeuntes.

-Maldição! Não posso mais – murmurou, empalidecendo, numa primeira fase, para de seguida ficar esverdeado. Não se aguentou. “E agora?” Questionou-se, para de supetão desandar do local. Logo por azar não trouxera o carro.

Entrou no metro, sentou-se, apertou o nariz e, bem alto sentenciou:

-Esta malta não toma banho!


Jorge C. Chora

sexta-feira, 5 de março de 2010

O dia em que o rei disse não!

Ninguém no reino sabia, ou sequer imaginava, o que se ia passar nesse dia. Os magos da corte, cujo papel era adivinhar o que ia acontecer, falharam redondamente na sua missão e pagariam com língua de palmo o seu fracasso. Já verão como, se tiverem um pouco de paciência.

O rei acordara sem saber se estava ou não bem-disposto. Doía - lhe a cabeça. Um estranho silêncio rodeava-o. O rei pura e simplesmente acordara meio surdo, e não o notara, tal o sossego que habitualmente reinava na câmara.

O camareiro-mor, enrodilhado aos pés da cama do poderoso rei, mal o ouvira mexer-se, levantara-se e iniciara a preparação do vestuário que o seu senhor ia usar. As cortinas da cama foram corridas com suavidade, enquanto o reposteiro-mor ajeitava a almofada real para facilitar o apoio a sua majestade, no sentido de o ajudar a levantar-se e ajeitava o cadeirão para que ele se sentasse.

Vestido e alimentado, seguiu para uma audiência particular que lhe tinha sido pedida e agendada para esse dia.

Fuinha, um homem incrivelmente rico, conseguira o encontro com o rei, assim do pé para a mão, ninguém sabia como. Há três dias que o proprietário Fuinha não dormia, devido ao nervosismo em que se encontrava. Desejava justiça. Tinha um caso urgente a apresentar que lhe estava a causar, ou melhor dizendo, lhe viria a provocar um prejuízo económico, caso não fosse resolvido a seu contento, e isso era coisa a que não estava habituado.

O queixoso era um homem muito magro, quase só ossos, que comia desalmadamente e estava sempre esfomeado. Mexia-se muito, dava estalidos com os dedos, pigarreava enquanto ensaiava o que ia dizer a sua Majestade. Tinha quase a certeza de que conseguiria convencer o rei da justeza da sua causa.

O caso era simples: uma inquilina sua, a Joana doceira, enviuvara há quinze dias e já lhe tinha confessado não ter capacidade para lhe pagar a renda em devido tempo. Pedira-lhe um adiamento pois estava com problemas…

-Problemas… todos têm problemas - resmungou Fuinha – e eu que os resolva. Por este caminho eu é que os vou ter… menos uma renda é sempre menos uma…não me faz falta…mas é uma questão de princípio… a única saída é expulsá-la… e uma palavrinha do rei ao juiz…

A sala de audiências abriu-se e o porteiro fez lhe sinal para entrar. Sentado numa cadeira alta, colocada em cima de um estrado, estava o rei. Num plano inferior dois conselheiros: um novo, que mais parecia ter engolido um pau de vassoura, tão empertigado estava, e o outro, velhote, desgrenhado, muito encolhido, quase com vergonha de estar ali. Era um antigo hortelão que o rei tornara nobre e seu conselheiro, depois dele o ter curado de um mal de estômago.

A audiência começou.
-Sua Majestade, o marido da minha inquilina Joana morreu e eu venho pedir a Vossa Majestade que interceda… pois ele era o ganha-pão da família … e não sendo possível ressuscitá-lo…- e Fuinha, atrapalhado, foi interrompido pelo rei:

-Ó bom homem, os meus poderes não chegam a tanto…

O proprietário arregalou os olhos. Não queria acreditar no que lhe estava a acontecer. O rei não podia interceder!

-Mas… -balbuciou Fuinha.

-Tenho de dizer não ao seu pedido! Não tenho poderes para ressuscitar o marido de Joana.
Fuinha tremia da cabeça aos pés ao ver a renda fugir-lhe. Ressuscitá-lo! Por que tinha falado em… e aqui já duvidara se teria pedido isso mesmo ao rei.

-Mas a Joana…

O hortelão lembrou-se, de repente, de quem era Joana e disse ao rei:

-Sua Majestade, a Joana doceira é a que faz os doces de que tanto gosta!

-Hum...hum…. – e colocava a mão em concha no ouvido esquerdo.

O hortelão, que já percebera que o rei estava com dificuldades em ouvir, comunicou por gestos e palavras:

-A Joana - e acto contínuo, apertou a sua orelha direita com dois dedos…


-Mau … - interrompeu o rei, pensando que o seu conselheiro tivesse perdido o juízo e lhe estivesse a dizer que a Joana era bonita…

-Não…-acalmou-o o hortelão, e logo de seguida imitou o gesto de que estava a comer e a lamber-se…

-Ah! Agora percebi. A Joana faz os doces de que eu gosto!

-Isso…

-Hum… o marido morreu…está com dificuldades - condoeu-se o rei e ordenou - tragam-na para o palácio, a ela e aos seus. Que nada lhe falte. Só coloco uma condição: que me faça um doce todos os dias.

O hortelão mal ouviu a sentença, ganhou asas e desapareceu para dar a boa nova à Joana.

Enquanto o rei abandonava a sala, o jovem conselheiro espumava de raiva, receoso de que o Fuinha lhe exigisse o dinheiro que lhe dera para conseguir a audiência.

Os doces de Joana trouxeram o fim das intrigas e inimizades na corte. Os cortesãos que estivessem zangados, pura e simplesmente não tinham direito ao doce nesse dia.

O único problema que Joana teve daí para a frente era o de que os comilões lhe comessem os doces antes da hora, mas o amigo hortelão resolveu-lhe esse sarilho: arranjou-lhe uma colher de pau de meio metro com que ela defendia os doces até à hora de irem à mesa e serem degustados.

Os magos, que não tinham adivinhado a surdez do rei, que tinham fracassado no que se ia passar nas audiências, nunca tinham sonhado, mas mesmo nunca, falhar de novo redondamente na previsão de que iriam levar com a colher de pau todos os dias, quando tentassem surripiar os doces e prová-los antes de eles chegarem à mesa.

Jorge C. Chora