Ardiam-lhe os pés. Há quatro dias que andava descalço. Uma
pequena distracção, ao refrescar-se no fontanário, fora a causa de ter ficado
sem os sapatos. Ao seu lado, dois colegas sem-abrigo, executaram a mesma tarefa
do que ele, segurando-os numa das mãos.”Era o que eu deveria ter feito”, culpabilizou-se.
Este percalço trazia-o enervado. Era mais um a acrescentar à
estranha semana que passara: fora expulso do seu local de pernoita, perdera o
apoio do restaurante onde lhe davam as sobras das refeições, pois tinham
decidido dá-las a outro:
-Não podemos apoiar sempre o mesmo! Temos de variar!
Ao escolher outro sítio onde dormir, acabou por acordar com
uma dor violenta num braço, seguida de uma ordem ensurdecedora:
-Daqui para fora…rápido … -e o agressor apontou-lhe uma
direcção vaga.
-Para onde posso ir?
Ainda mal acabara a frase e já estava a levar uma pancada
tão forte como a primeira.
A semana fora para esquecer. Tomou a direcção de um balneário
público, rezando para que conseguisse, ao menos, uns chinelos.
À entrada, cruzou-se com alguém cuja cara não lhe era
desconhecida. Olhou-lhe para os pés e soube de imediato de quem se tratava: do
ladrão dos seus sapatos.
Não conseguiu deitar-lhe a mão. O larápio evaporou-se.
O funcionário do balneário ao vê-lo entrar descalço
exclamou:
-Todos os diabos têm sorte! O cavalheiro que acabou de sair
deixou uns chinelos muito velhos…mas a cavalo dado… ou é daqueles que só querem
coisas novas?
Não lhe respondeu. Limitou-se a olhá-lo sem o ver. Virou-lhe
as costas e saiu não sem que antes o funcionário ensaiasse umas desculpas
esfarrapadas.
Estava decidido a encontrar o ladrão e a reaver o que lhe
pertencia. Ao fim da manhã encontrou-o a experimentar sapatos numa loja. O
homem que o atendia era o mesmo que o agredira durante a noite. Entrou,
recolheu os seus sapatos que se encontravam postos de lado e, já à porta,
gritou:
-Olha ò sem-abrigo…o dono da loja tem a mania de dar sovas
aos que dormem na rua! Vê se escolhes o melhor calçado que ele te vai dar!
O dono parecia picado por um aguilhão. Deu um salto de corça
e fez menção de apertar o pescoço ao falso cliente. Ainda mal tocara no chão
quando foi projectado para fora da loja e se estatelou no passeio.
O “cliente” escolheu dois pares de sapatos, mas voltou atrás
e tirou um terceiro que deu à sua vítima do fontanário:
-Desculpa lá “pá” pelo incómodo que te causei…
-Obrigado mas…
-Se não queres, vai lá devolver. Aproveita para lhe pedir
para ele te dar mais uns murros…
Deu dois passos, voltou-se para trás e arremessou-os para a
porta da loja:
-Fazem-te mais falta a ti do que a mim!
- Onde vamos parar! Agora os aristocratas vivem na rua! Onde
é que isto já se viu! – berrou, incrédulo e furioso, o ladrão de sapatos.
Jorge C. Chora
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