Ninguém sabe ao certo quem o homem é. O que se sabe, e isso todos o afiançam, é que ele é como o fado: nasceu sabe-se lá onde, se em África ou no Brasil, suspeita-se também de que numa rua de Alfama, de uma mulher vivida e falada. Certeza, certezinha, é que vive cá, que aqui se fez e se faz.
Cresceu sem eira nem beira e especializou-se nas trapalhices de todo o género. Aprendeu o que não devia e irmanou-se ao desenrascanço. Não anda, desliza, ginga como um bailarino, serpenteia como uma surucucu e dá o bote quando menos se espera.
Esperam-no na feira da Ladra. Tem dívidas. Um ror delas, contraídas ao jogo, em farras e actividades pouco recomendáveis.
-As dívidas são sagradas…- ameaça de sobrolho franzido o Capeta- em representação do chefe.
- Verdade mais sólida e incontestável não há… dívidas são dívidas, são sagradas, nunca falaste tão bem… - respondeu-lhe o Maganão maneando as ancas, como um pugilista preste a atacar o adversário.
- Então vens para acertar as contas…não era sem tempo… - fungou, sobranceiro.
- Venho propor-te um jogo. Caso ganhes, fico a dever-te o dobro. Se eu ganhar, fico com a dívida paga…
- O chefe não aceita jogos…
-Mas ó chefe… neste momento o chefe és tu… estás é com medo dele … - arriscou o devedor.
- Medo? – e o Capeta, inchou o peito e concluiu - é coisa que nunca tive…
A mesa de jogo foi improvisada em cima de um caixote. Ainda o discípulo do demo não tivera tempo de piscar um olho e as cartas viciadas do Maganão ditaram-lhe não uma, nem duas, mas precisamente três derrotas.
Pediu a desforra e o Maganão, liberal, destilando mais veneno que a surucucu de quem era irmão, concedeu-lha:
-É um direito de quem perde, ter a possibilidade de desforra.
Seguiram-se mais duas derrotas do Capeta. O Maganão atirou-lhe:
-As dívidas são sagradas… tens uma semana para me pagares. Caso não me pagues, os juros serão diários…
Há quem tenha visto o Capeta a sair da igreja e tenha escutado o seu pedido ao Senhor:
- Peço-te, Senhor, que me reconduzas ao estatuto de anjinho … mais merecedor do que eu não há …
Jorge C. Chora
quinta-feira, 6 de maio de 2010
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Quando até o diabo é intrujado...
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