quinta-feira, 6 de maio de 2010

O Capeta envergonhado

Ninguém sabe ao certo quem o homem é. O que se sabe, e isso todos o afiançam, é que ele é como o fado: nasceu sabe-se lá onde, se em África ou no Brasil, suspeita-se também de que numa rua de Alfama, de uma mulher vivida e falada. Certeza, certezinha, é que vive cá, que aqui se fez e se faz.

Cresceu sem eira nem beira e especializou-se nas trapalhices de todo o género. Aprendeu o que não devia e irmanou-se ao desenrascanço. Não anda, desliza, ginga como um bailarino, serpenteia como uma surucucu e dá o bote quando menos se espera.
Esperam-no na feira da Ladra. Tem dívidas. Um ror delas, contraídas ao jogo, em farras e actividades pouco recomendáveis.

-As dívidas são sagradas…- ameaça de sobrolho franzido o Capeta- em representação do chefe.

- Verdade mais sólida e incontestável não há… dívidas são dívidas, são sagradas, nunca falaste tão bem… - respondeu-lhe o Maganão maneando as ancas, como um pugilista preste a atacar o adversário.

- Então vens para acertar as contas…não era sem tempo… - fungou, sobranceiro.
- Venho propor-te um jogo. Caso ganhes, fico a dever-te o dobro. Se eu ganhar, fico com a dívida paga…

- O chefe não aceita jogos…

-Mas ó chefe… neste momento o chefe és tu… estás é com medo dele … - arriscou o devedor.

- Medo? – e o Capeta, inchou o peito e concluiu - é coisa que nunca tive…

A mesa de jogo foi improvisada em cima de um caixote. Ainda o discípulo do demo não tivera tempo de piscar um olho e as cartas viciadas do Maganão ditaram-lhe não uma, nem duas, mas precisamente três derrotas.

Pediu a desforra e o Maganão, liberal, destilando mais veneno que a surucucu de quem era irmão, concedeu-lha:

-É um direito de quem perde, ter a possibilidade de desforra.

Seguiram-se mais duas derrotas do Capeta. O Maganão atirou-lhe:

-As dívidas são sagradas… tens uma semana para me pagares. Caso não me pagues, os juros serão diários…

Há quem tenha visto o Capeta a sair da igreja e tenha escutado o seu pedido ao Senhor:

- Peço-te, Senhor, que me reconduzas ao estatuto de anjinho … mais merecedor do que eu não há …

Jorge C. Chora

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