domingo, 12 de setembro de 2010

Clara e o deus dos pés feios

Clara era jovem e bela mas detestava os seus pés. Passava horas a observá-los e achava-os feios. O serem pequenos era a único aspecto que lhe agradava.

Olhava para os dedos e considerava-os ossudos, magros, esqueléticos. Apreciava, de modo crítico, o peito do pé: demasiado alto para o seu gosto. Quanto a uma pequeníssima veia azul que se podia ver do lado direito do pé esquerdo, sofria como se de um defeito imenso se tratasse.

-Que horror! – exclamava, olhando de soslaio o pequeno risco azul que se assemelhava, na sua visão, a um rio caudaloso.

Um belo dia, quando ela molhava os pés no regato do bosque, o deus dos pés feios, ao ouvir os lamentos da jovem, parou e decidiu intervir:

-Posso ajudar-te?

A menina estremeceu. Não queria acreditar no que estava a ver. Diante de si estava uma criatura tão feia, mesmo tão feia, que duvidava da sua existência: Tinha uma barbicha pontiaguda, comprida, revirada para cima, no alto da cabeça dois chifres grandes. O tronco era comprido e os pés (louvado seja Deus!) eram de um bode!

-Mas quem és tu? – e esfregava os olhos, com receio de estar a ser vítima de uma brincadeira.

-Sou o deus dos pés feios. Habito os mesmos bosques que Pã, um antepassado meu, que era o deus dos bosques e dos rebanhos.Ele morou aqui há milhares de anos.

E a menina vaidosa, confidenciou – lhe o seu problema.

-Não acredito! Os teus pés são lindos! Os mais bonitos que alguma vez vi. Quem me dera que a minha mulher tivesse uns assim! - disse-lhe o descendente de Pã .

-Pois se queres, podes trocá-los com os da tua mulher.

Ainda mal acabara a frase e a troca dos pés tinha sido efectuada. Olhou-os assustada. Eram enormes, com joanetes, com os dedos retorcidos devido às artroses, com umas unhas grossas e escuras como garras. Arrepiou-se. Se o arrependimento matasse…

-Senhor, senhor…eu estava a brincar…

-Com isso não se brinca…quem dá e tira vai para o inferno…recuso-me a trocar a única coisa que a minha mulher tem agora de belo…

-Mas eu… - tentou defender-se, sem sucesso, a jovem.

-Não posso aceitar a única coisa que a menina tem agora de feio … - replicou o deus dos pés feios.

A menina agitou-se. Uma revolta enorme começou a apoderar-se de si. Deu uma volta sobre si própria, furiosa, com uma rapidez estonteante e, quando se preparava para falar, acordou ao bater com a cabeça na cama.

Olhou receosa para os seus pés. Continuavam a ser pequenos e lindos. Sentiu um grande alívio. Fora só um sonho. Jurou a si própria deixar-se de excessos de vaidade. Nesse preciso momento, o enorme cajado que o deus dos pés feios usava, caiu com estrondo ao chão.

Olhou em seu redor mas não viu vivalma. Só o cajado lá permanecia.
Terá sido um sonho?

Certo, certo, é que ninguém mais ouviu Clara queixar-se dos seus lindos pés.

Jorge C. Chora

2 comentários:

  1. Também precisas que um descendente de Pã te apareça?

    ResponderEliminar
  2. E a Clara teve sorte! Ele há por aí tanto maganão que se poderia aproveitar da ingenuidade dela (e não passaria pela cabeça de nenhum miúdo de hoje acreditar num deus dos pés, feios ou bonitos), mas sem ser num sonho... Estou a ser maldoso, eu sei.

    ResponderEliminar