quarta-feira, 9 de novembro de 2011

A vocação de Abraão

As bocas semi-abertas de espanto não podiam ser mais expressivas. A ninguém, mas a mesmo ninguém, passaria pela cabeça ver algum dia o sorriso aberto, feliz, luminoso e até contagiante do Abraão. Há anos que não sorria. Não tinha motivos para o fazer e anunciava aos quatro ventos essa desilusão. Estava em crise por não saber o que a vida lhe destinava.

-Abraão! Conta-nos o que se está a passar contigo! Qual é a novidade que te faz sorrir?

-Estou muito contente…julgo ter descoberto o que a vida me destina…o sentido profundo da minha existência…

-Conta-nos…partilha connosco, pobres mortais arredados há muito de motivos de satisfação… - imploraram os amigos.

-A causa é banal, está ao alcance de todos…é mesmo ridícula e inconfessável… - escusava-se Abraão.

-Vá, conta-nos, não nos faças a maldade de te calares…

-Sou capaz de ter descoberto a minha vocação. Andava sem rumo, ao Deus dará, e de repente…zás…fez-se luz …

E de novo as bocas dos ouvintes se abriram de espanto. A ansiedade começou a apoderar-se do grupo. Qual o segredo de Abraão?

Após uma semana inteira de insistência, conseguiram levantar uma pontinha do véu: Abraão tinha-se dedicado a praticar o bem. E mais não se disse.

Foi por mero acaso que se veio a saber que Abraão oferecera os seus préstimos a uma casa de diversão nocturna, onde ajudava as artistas a despirem-se, antes de entrarem em cena.

-Mas isso é que é o teu trabalho caritativo?

-Só vos contaram metade. Também as ajudo a vestirem-se…ah! E trabalho à borla!

Desde esse dia, acrescentaram-lhe um “ c” antes do nome e não há amigo que não queira ajudá-lo na sua missão caritativa.

Jorge C. Chora

1 comentário:

  1. Um texto muito bom para quem acha que os políticos são todos uma sarna inqualificável, empenhada em levar-nos à miséria. Pois então não vedes que, também eles, andam a despir-nos na sua casa de diversão diurna (assembleia da república, para quem tenha dúvidas...)? A despir-nos de subsídios, de direitos... E a vestirem-nos de contribuições, impostos, cortes orçamentais, pobreza... Também eles encontraram a sua vocação existencial, a qual consiste... em arruinar a existência dos outros!

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