sexta-feira, 4 de março de 2016

BESUNTA Q`DÓI OU OS MITOS URBANOS

                                                                                                                  
Domingos Pedro ainda não saíra da sua ilha e as saudades já lhe pesavam. O cheiro a mar, os dias na praia, o sal na pele, a preguiça dos dias sem quaisquer preocupações, mas o que mais lhe custava deixar era a vadiagem nocturna, embalada por melodias que escorriam amores proibidos

Viver sem trabalhar era um privilégio, agravado pelo facto dos pais serem pobres. A carta chegada de Lisboa, enviada pelo primo, dando-lhe a notícia de haver um posto de trabalho na obra onde ele trabalhava, decidira-o: ia para Portugal.

Sem dinheiro para voar, arranjou um lugar num cargueiro e da viagem nunca mais se quis recordar. Jurou nunca mais viajar de barco. Vomitou toda a viagem, a toda a hora, tivesse ou não comido. Chegou a pensar que o coração, os pulmões e outros órgãos lhe tivessem saído pela boca.

Quando chegou a Lisboa ficou a saber que Salazar morrera. Era verão e estava-se em 1970.Desembarcou com a mala, herdada do pai, e tinha à sua espera o primo. Deram uma pequena volta por Lisboa, num táxi de um compadre e rumaram a casa, num bairro de barracas nos arredores da capital.

Depois de alojado foram à taberna de um conterrâneo que lhes ofereceu uma aguardente de cana. O único milagre que a cana era incapaz de fazer, era encher os bolsos dos bebedores pois, quanto ao resto, estavam provados e comprovados os efeitos medicinais: curavam dores de todo o feitio, até as de amor.

 Domingos saiu da tasca com uma enorme dor de cabeça. Logo por azar, era a excepção que confirmava a regra. Essa noite dormiu mal e sonhou que estava de novo embarcado. Quando finalmente se encontrava quase a dormir o primo anunciou-lhe que eram horas de se levantarem.
A vida na obra era uma estafa. O intervalo que tinham, era o do almoço, em que engoliam comida fria e um vinho que era uma autêntica zurrapa. Trabalhavam ao ritmo das asneiras e insultos do capataz, que achava o vinho americano que bebiam na obra, um verdadeiro néctar e nunca deixava a sua caneca vazia.

Do trabalho para casa e vice-versa, se compôs a vida de Domingos Pedro. A do primo só tinha mais uma variante em relação à sua, que era a ida diária à taberna do conterrâneo.

O silêncio reinante na barraca até doía. Pouco ou nada conversavam e quando o faziam era sobre a ilha e sobre as saudades da vida que nela levavam e da família que lá tinham deixado.

Um dia passou pelo seu local de trabalho um vendedor ambulante. Entre as várias mercadorias, trazia uns poucos de rádios. Os olhos de Domingos prenderam-se
neles e pensou que um lhe seria muito útil. Imaginou-se na habitação ouvindo música e notícias. Seria o fim do maldito silêncio. Quando voltasse à ilha oferecê-lo-ia aos pais.

O vendedor apercebeu-se do interesse do Domingos por um rádio. Elogiou os rádios enumerando-lhes as características: a pilhas e a electricidade; som de qualidade; funcionamento garantido em todas as posições e demonstrava virando-o de cabeça para baixo, para a esquerda e para a direita, para a frente e para trás.

Passaram ao preço e Domingos regateou-o até a exaustão. Conseguiu baixar o preço para metade. O vendedor entre “mãezinhas” e juras de que perdia dinheiro, entregou-lhe um rádio numa bonita embalagem.

O dia passou devagar, muito devagar e a hora de saída nunca mais chegava. Quando o capataz deu por fim o dia de trabalho, mal deu por si, estava à porta de casa. Jantou, com o embrulho bem à sua frente, gozando o momento de o abrir.

Cerca de uma hora depois, decidiu presentear-se. Retirou-o da caixa com todos os cuidados. Ali estava ele, em tons de azul. Afagou-o, cheirou-o e colocou-o, com carinho, em cima da mesa. Ligou-o e ele não piou. Um suor frio escorreu-lhe da testa e das costas: estava avariado!?

Conseguiu acalmar-se e pensou que ele não tocava por falta de pilhas. Também não era problema pois ele funcionava a electricidade. Ligou-o  à tomada, mas nenhum  som se ouviu. Nervoso, decidiu abri-lo. No seu interior não havia nada. O que existia era um grande pedaço de plasticina. O coração dava-lhe pulos e parecia saltar-lhe do peito. Uma raiva surda apoderou-se de si. O filho da p… tinha-o enganado. Correu à taberna à procura do primo. Este, falou a dois ou três clientes e sossegou-o:

-Amanhã, bem cedo, resolvemos o problema…

- Como assim? Onde é que ele mora?

-Já me disseram…

Pela manhã,  Domingos foi acordado bem cedo pelo primo que lhe disse:

-Traz um pacote de manteiga do frigorífico. De manteiga não, traz um de margarina que é mais barato…

Domingos Pedro cumpriu a ordem sem fazer perguntas mas não se coibiu de pensar que o primo ainda estava com os vapores do grogue. A cana ainda havia de o matar.

Chegados a casa do” Mãezinha Juro por Deus” o seu primo falou assim:

-Vai buscar dois rádios que toquem.

-Dois!?

-Descansa, só levamos um…o outro fica contigo.

Mal os trouxe, o primo sintonizou-os numa estação que estava a tocar uma música dos Beatles. Deu o pacote ao “Mãezinha” e advertiu-o:

-Coloca-o num local bem visível, com o rádio ao lado. Caso repitas a gracinha, ficas a saber que precisarás do pacote, uma vez que o vais ter de o guardar em certo sítio….

Que se saiba, nunca mais vendeu rádios falsos.

Jorge C. Chora



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