segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O SACRIFÍCIO DOS SAPATOS APERTADOS



A senhora arrasta-se, por assim dizer. Pernas e pés, só por mero acaso lhe obedecem.

-E pensar eu que com estas e com estes-  e aponta para as pernas e pés - ia a todo o lado, descalça ou calçada, conforme me deixassem ou melhor, me autorizassem…

Fala para quem está ao pé. Faltam-lhe as forças. Devagar e em voz muito baixa, desfia o rosário para quem a ouve ou finge ouvi-la. Embora idosa, sente-se que a senhora está sobretudo cansada.
Aproveita o facto de se ter queixado dos pés e recorda a história que tem em mente, lá do seu Alentejo:

- Houve um dia um baile lá na minha terra. Resolvi ir, mas não podia comparecer descalça. O único par que tinha apertava-me de tal modo que era já um suplício pensar em usá-los. Ainda por cima estavam todos molhados, devido à chuva que tinham apanhado.  Foi necessário secá-los ao calor da lareira. Ficaram duros, muito duros, mas nada de alargarem: encarquilharam-se. À força, consegui calçá-los e dirigi-me ao baile.

-Então aí é que se fartou de dançar… - arrisquei.

-Qual quê…a minha mãe passou ocasionalmente pelo local, viu-me e mandou-me ir para casa.

-Então todo o esforço foi inútil?

-Não…pelo contrário…

Nesse momento fiquei confuso. Dores nos pés, regresso a casa sem usufruir o momento e tinha valido a pena?

-Sim…foi lá que vi, o homem que viria a ser o meu marido! Não dancei, mas ficou debaixo de olho…

É caso para se dizer que desejo de alentejana é só um querer adiado, à espera de ser concretizado. Bem concretizado, digo eu, que ainda conheci o felizardo-catrapiscado.


Jorge C. Chora

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