quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

A CANETA AMUADA


A minha caneta anda tão amuada que há muito se escondeu. Não sei bem o que se passou, mas acho que tenho uma ideia.

Foi uma trabalhadora incansável: trabalhava de manhã, à tarde e à noite.

Escrevia a preto, pois recusava a tinta vermelha por achá-la penalizante. Já bastava assinalar os erros, ter de colocar os dedos na ferida para depois serem trabalhados e superados, sendo desnecessário agigantá-los a tinta vermelha. Escrevia também relatórios, avaliações, mensagens, recados e histórias.

E de repente, com a minha aposentadoria, passou unicamente a escrever crónicas, pequenas histórias e poesia. A intensidade de trabalho diminuiu, mas não desapareceu, embora a caneta se tivesse ressentido com a redução das tarefas. Com o tempo viu-se um tanto ou quanto marginalizada pelo computador. O inimigo foi ficando cada vez mais forte e ela, coitada, a ruborizar-se, a enfurecer-se, a pensar escapulir. Aguentou as ofensas até onde pode, exatamente até à maldita pandemia. Era usada fora de casa, nomeadamente nos cafés e com a epidemia, as idas a esses espaços reduziram-se ao mínimo. Sentiu-se mal, bastante mal, por deixar quase de ser utilizada. Um dia, sem eu perceber, resolveu alforriar-se sem que eu lhe tivesse passado a respetiva carta.

São muitos os dias em que me lembro dela, embora o computador, que a despreza, me segrede amiúde:

- Deixa-a em paz! Ela tem direito à reforma!

Estou em crer que ela se tenha cansado de semelhante protagonismo e irreverência, e se tenha escondido. Já me fartei de chamá-la, mas até hoje, ainda não se dignou a responder-me. Sinto de novo a sua falta, pois com abertura dos cafés, necessito dela para escrever nos guardanapos e tenho de o fazer com uma companheira sua, mas não é a mesma coisa.

Resta-me a saudade de uma velha companheira que acabou por me ser infiel!

Jorge C. Chora

5/o1/2022

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