sexta-feira, 5 de março de 2010

O dia em que o rei disse não!

Ninguém no reino sabia, ou sequer imaginava, o que se ia passar nesse dia. Os magos da corte, cujo papel era adivinhar o que ia acontecer, falharam redondamente na sua missão e pagariam com língua de palmo o seu fracasso. Já verão como, se tiverem um pouco de paciência.

O rei acordara sem saber se estava ou não bem-disposto. Doía - lhe a cabeça. Um estranho silêncio rodeava-o. O rei pura e simplesmente acordara meio surdo, e não o notara, tal o sossego que habitualmente reinava na câmara.

O camareiro-mor, enrodilhado aos pés da cama do poderoso rei, mal o ouvira mexer-se, levantara-se e iniciara a preparação do vestuário que o seu senhor ia usar. As cortinas da cama foram corridas com suavidade, enquanto o reposteiro-mor ajeitava a almofada real para facilitar o apoio a sua majestade, no sentido de o ajudar a levantar-se e ajeitava o cadeirão para que ele se sentasse.

Vestido e alimentado, seguiu para uma audiência particular que lhe tinha sido pedida e agendada para esse dia.

Fuinha, um homem incrivelmente rico, conseguira o encontro com o rei, assim do pé para a mão, ninguém sabia como. Há três dias que o proprietário Fuinha não dormia, devido ao nervosismo em que se encontrava. Desejava justiça. Tinha um caso urgente a apresentar que lhe estava a causar, ou melhor dizendo, lhe viria a provocar um prejuízo económico, caso não fosse resolvido a seu contento, e isso era coisa a que não estava habituado.

O queixoso era um homem muito magro, quase só ossos, que comia desalmadamente e estava sempre esfomeado. Mexia-se muito, dava estalidos com os dedos, pigarreava enquanto ensaiava o que ia dizer a sua Majestade. Tinha quase a certeza de que conseguiria convencer o rei da justeza da sua causa.

O caso era simples: uma inquilina sua, a Joana doceira, enviuvara há quinze dias e já lhe tinha confessado não ter capacidade para lhe pagar a renda em devido tempo. Pedira-lhe um adiamento pois estava com problemas…

-Problemas… todos têm problemas - resmungou Fuinha – e eu que os resolva. Por este caminho eu é que os vou ter… menos uma renda é sempre menos uma…não me faz falta…mas é uma questão de princípio… a única saída é expulsá-la… e uma palavrinha do rei ao juiz…

A sala de audiências abriu-se e o porteiro fez lhe sinal para entrar. Sentado numa cadeira alta, colocada em cima de um estrado, estava o rei. Num plano inferior dois conselheiros: um novo, que mais parecia ter engolido um pau de vassoura, tão empertigado estava, e o outro, velhote, desgrenhado, muito encolhido, quase com vergonha de estar ali. Era um antigo hortelão que o rei tornara nobre e seu conselheiro, depois dele o ter curado de um mal de estômago.

A audiência começou.
-Sua Majestade, o marido da minha inquilina Joana morreu e eu venho pedir a Vossa Majestade que interceda… pois ele era o ganha-pão da família … e não sendo possível ressuscitá-lo…- e Fuinha, atrapalhado, foi interrompido pelo rei:

-Ó bom homem, os meus poderes não chegam a tanto…

O proprietário arregalou os olhos. Não queria acreditar no que lhe estava a acontecer. O rei não podia interceder!

-Mas… -balbuciou Fuinha.

-Tenho de dizer não ao seu pedido! Não tenho poderes para ressuscitar o marido de Joana.
Fuinha tremia da cabeça aos pés ao ver a renda fugir-lhe. Ressuscitá-lo! Por que tinha falado em… e aqui já duvidara se teria pedido isso mesmo ao rei.

-Mas a Joana…

O hortelão lembrou-se, de repente, de quem era Joana e disse ao rei:

-Sua Majestade, a Joana doceira é a que faz os doces de que tanto gosta!

-Hum...hum…. – e colocava a mão em concha no ouvido esquerdo.

O hortelão, que já percebera que o rei estava com dificuldades em ouvir, comunicou por gestos e palavras:

-A Joana - e acto contínuo, apertou a sua orelha direita com dois dedos…


-Mau … - interrompeu o rei, pensando que o seu conselheiro tivesse perdido o juízo e lhe estivesse a dizer que a Joana era bonita…

-Não…-acalmou-o o hortelão, e logo de seguida imitou o gesto de que estava a comer e a lamber-se…

-Ah! Agora percebi. A Joana faz os doces de que eu gosto!

-Isso…

-Hum… o marido morreu…está com dificuldades - condoeu-se o rei e ordenou - tragam-na para o palácio, a ela e aos seus. Que nada lhe falte. Só coloco uma condição: que me faça um doce todos os dias.

O hortelão mal ouviu a sentença, ganhou asas e desapareceu para dar a boa nova à Joana.

Enquanto o rei abandonava a sala, o jovem conselheiro espumava de raiva, receoso de que o Fuinha lhe exigisse o dinheiro que lhe dera para conseguir a audiência.

Os doces de Joana trouxeram o fim das intrigas e inimizades na corte. Os cortesãos que estivessem zangados, pura e simplesmente não tinham direito ao doce nesse dia.

O único problema que Joana teve daí para a frente era o de que os comilões lhe comessem os doces antes da hora, mas o amigo hortelão resolveu-lhe esse sarilho: arranjou-lhe uma colher de pau de meio metro com que ela defendia os doces até à hora de irem à mesa e serem degustados.

Os magos, que não tinham adivinhado a surdez do rei, que tinham fracassado no que se ia passar nas audiências, nunca tinham sonhado, mas mesmo nunca, falhar de novo redondamente na previsão de que iriam levar com a colher de pau todos os dias, quando tentassem surripiar os doces e prová-los antes de eles chegarem à mesa.

Jorge C. Chora

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