Um jovem pastor, abrigado numa gruta minúscula, abriu a boca
de espanto ao ver um recém-nascido, calçando umas enormes sandálias, a circular
em torno dos rebanhos do deus Apolo. O que quereria ele? interrogou-se o pastor tiritando de frio.
Ainda não tinham passado três nuvens sobre o rebanho quando
algo de espantoso aconteceu: o recém-nascido separou as melhores cabeças de gado
e iniciou uma marcha às arrecuas, andando ele próprio de marcha atrás.
Surpreso com o que via, jovem pastor escondeu-se aqui e
acolá e seguiu o estranho recém-nascido até ao local onde o viu a ocultar o
gado. As dúvidas, quando ao acto que estava a ser cometido, dissiparam-se: era
um roubo! Fosse quem fosse, o recém-nascido era um ladrão!
Seguiu o pequeno larápio, assegurando-se de que não era
visto e verificou que ele se tinha acolhido a um enorme palácio, de todos
conhecido como a morada de Zeus. Pelo ambiente festivo que aí reinava, ficou a
saber que algo de muito importante se estava a passar. Curioso, perguntou a uma
belíssima mulher que acabara de sair, o motivo de tal alegria . Foi informado
de que a festa se devia ao nascimento de mais um filho de Zeus. Naquele preciso
momento, viu assomar a uma janela do palácio a deusa Hera, furibunda, lançando
impropérios cabeludos a Zeus. Aproveitou a presença da mulher para a
questionar:
-Não deveria Hera estar contente pelo nascimento de mais um
filho?
-Sim, se fosse dela…
-Não percebo… -confessou o pastor.
-É filho de Zeus e de Maia e deram-lhe o nome de Hermes…
A conversa foi interrompida pela chegada faiscante de Apolo,
que viera queixar-se a Zeus do comportamento de Hermes.
-De Hermes? Apolo, meu filho…o teu irmão Hermes é um
recém-nascido! Anda vê-lo no berço…
Pé ante pé dirigiram-se à caminha de Hermes. Entraram no
quarto. Hermes fingia dormir um sono angelical. Sem que Zeus ou Apolo se
apercebessem, abria de forma imperceptível um olho e controlava-os nas suas deambulações
ao redor do seu berço.
Zeus abanou-o de modo terno. Hermes fingiu despertar,
ensonado, esfregando os olhos:
-O que foi meu pai?
-O teu irmão Apolo, acusa-te de lhe teres ficado com metade
do seu rebanho. Tem testemunhas do teu acto. Deves devolvê-las ainda hoje com
um pedido de desculpas.
Hermes, apanhado em falta, olhou à sua volta e reparou numa
carapaça de tartaruga e logo ali inventou a lira e deu-a a Apolo. Este,
comovido, não só lhe perdoou o roubo como lhe deu o rebanho que Hermes lhe
tirara, e ainda lhe ofereceu o seu bordão alado, o caduceu.
Hermes agradeceu e dirigiu-se o mais depressa possível ao
esconderijo. Ao chegar verificou que metade do rebanho desaparecera. Gritou
furioso:
-Quem ousou roubar o filho de Zeus e irmão de Apolo?
De um canto da gruta, ouviu-se uma voz:
-Fui eu Hermes…vi-te tirar o rebanho a Apolo …
-E depois? Isso deu-te o direito de o tirares de mim?
-Claro que sim!- respondeu-lhe o pastor de modo agressivo.
-Como assim!
-Peço-te desculpa…sei que és um deus mas ainda não sabes
tudo. Ladrão que rouba a ladrão tem cem anos de perdão.
-Mas quem és tu, descarado, que me vens dar lições…
-Eu não sei bem quem sou, mas já me disseram que também sou filho de
Zeus…
-Filho de meu pai? E quem é a tua mãe?
-Disseram-me que Zeus soube de uma bela Tágide que habitava
na Ibéria. Apaixonou-se quando a viu. Desses amores nasci eu…
-Mau, por Zeus, tenho outro irmão tão ladrão como eu…
E foi aqui que duas serpentes saltaram do fundo da gruta,
cada uma do seu canto e Hermes lançou o bordão que Apolo lhe dera para as
separar. Elas enrolaram-se de forma pacífica à volta do bordão, que se tornou o
símbolo de Hermes.
Hermes, voltou-se para o filho da Tágide, seu irmão, e
disse-lhe:
-A partir de agora vais transportar o meu caduceu. Serás o
meu representante, o meu ajudante, quando eu não tiver possibilidades de
transportar uma mensagem, proteger os ladrões, os comerciantes e outros
quejandos…
E foi assim que os países ibéricos se tornaram um paraíso
para os discípulos de Hermes, com direito a um embaixador permanente.Era filho de Zeus e de uma Tágide, irmão dilecto de Hermes,
venerado por uma corte enorme de discípulos, que foi crescendo ao longo dos
séculos.
Jorge C. Chora
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