sábado, 17 de outubro de 2015

O CHICO DAS MÚSICAS MANSAS


Foi criado em casa do padre. O cura, nos seus tempos livres, ensinou-o a ler e a escrever, e não se coibiu de lhe dar alguns calduços quando o apanhava distraído. Aprendeu até meia dúzia de termos latinos que empregava para embasbacar os da mesma idade e endrominar os adultos que se deixavam ir na cantiga.

Prestava alguns serviços, como pequenas reparações, carregar e descarregar mercadorias, trabalhos agrícolas…. Amoedava tudo o que lhe pagavam. O pecúlio angariado era guardado numa pequena lata com um único objectivo: comprar um gira discos.

À noite sonhava que estava no baile da aldeia e que dançava, dançava até cair de cansaço, ora com a Madalena ora com a Laura. Ao acordar caía na dura realidade: nunca dançara com nenhuma.

Ninguém aceitava os seus convites para dançar. Passaram-se anos e as recusas mantiveram-se. Para além de o considerarem o oposto de um Adónis, as raparigas sabiam-no pobre, aliás, muito pobre. A primeira característica ainda desculpavam, pois havia-os tão feios quanto ele mas os dois atributos juntos, aniquilavam-no por completo.

Num verão escaldante, conseguiu concretizar o seu sonho: comprou um gira discos  Philipps que funcionava a pilhas e a corrente eléctrica. Na primeira oportunidade, deslocou-se a uma loja de discos e iniciou uma pequena colecção,  subordinada aos seus dois grandes critérios: os de música mansa e os de música brava. Os primeiros, os da mansa, eram discos em que se podia dançar agarrado; os outros, implicavam o afastamento dos pares e saltos endemoninhados.

No terreiro à beira do palheiro, passaram a realizar-se bailes todos os fins-de-semana. Quando o Chico ligava a geringonça, estalavam palmas, ouviam-se vivas e o baile começava. Nas primeiras vezes tentaram marginalizá-lo e a reacção foi imediata:

-Ou as moças dançam comigo ou não há baile! – e, logo a seguir, desligava o aparelho, fechava-o e fazia menção de sair. Impediam-no de se ir embora e ele dançava, depois de colocar as músicas mansas e escolher a parceira.

Quando as dançarinas de que ele gostava não estavam a bailar consigo, Chico aproximava-se do toca- música e colocava um disco de música brava.

E, foi assim que o antigo patinho feio se tornou o cisne da aldeia e conseguiu que algumas o levassem ao palheiro e ele ficasse a conhecer, pelo menos de vista,o extraordinário e belo mistério que as mulheres escondiam.

Enquanto viveu, nunca se esqueceu de nas suas orações, agradecer e pedir ao Senhor, a renovação destes verdadeiros milagres e, à cautela, finalizar dizendo: sei que não mereço mas não me desampares…

E nos dias de baile, ia perfumar-se à adega, com o cheirinho a maçã camoesa, vindo do cimo dos pipos, e cantava imitando o Zeca na canção da Beira Baixa:
"...
Cheira à flor da laranjeira,
Nossa Senhora da Póvoa,
Minha boquinha de riso,
Minha maçã camoesa
Criada no paraíso.”

Jorge C. Chora




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