segunda-feira, 24 de maio de 2021

O MUNDO DE HILÁRIO


                                                                           I

O jovem gerente saiu da empresa, duas horas após o seu fecho. Não foi uma excepção. Contavam-se pelos dedos os dias em que saíra mais cedo. Aquele horário nada tinha a ver com atrasos de serviço. Gostava de lá permanecer no sossego, envolto no silêncio, a ler os artigos dos seus jornais de eleição.

A verdadeira razão da sua permanência no trabalho fora de horas, estava relacionada com a ausência da Margarida, a sua namorada, a especializar-se numa universidade estrangeira.

Antes de conhecer a Margarida tinha um amiga mais velha, solteira, de mente arejada, que o seduzia e ele deixava-se seduzir, numa base semanal . Laura era uma mulher interessante. Culta, independente economicamente, um tanto ou quanto rebelde, que o satisfazia e se satisfazia plenamente, sem hesitações, culpas ou arrependimentos. Ambos aferiam o grau de contentamento mútuo, quando enlouquecidos de prazer , gritavam o nome um do outro e ouviam as sapatadas dadas pela vizinha na parede, enquanto gritava:

-Desenvergonhados… desenvergonhados…

Caíam suados e exaustos dormindo um breve sono reparador. Despediam-se e falavam ao telefone quando era preciso. Quando o desejo apertava, geralmente passada uma semana, Laura dizia-lhe:

-Hiláriozinho… - e ele sabia-a necessitada de carinhos- o diminutivo dizia tudo.

E a cena das sapatadas da vizinha repetia-se, pelo menos duas vezes em cada visita de Hilário a Laura.

Quando Margarida entrou na vida de Hilário, Laura, que não a conhecia, deu-lhes espaço e afastou-se.


                                                                           II


No dia em que Margarida regressou a Portugal, Hilário ficou de a ir buscar ao aeroporto de Faro.

Ela viera num voo de baixo custo e Hilário fazia questão em esperá-la pessoalmente mas, azar dos azares, dera uma pequena queda e partira uma perna. Laura ofereceu-se para o acompanhar e levou-o no seu carro.

Mal Laura viu Margarida, foi invadida por uma estranha sensação de ternura por aquela jovem desengonçada, alta e risonha que após beijar o namorado, a abraçou de modo estreito e confiante.

A intuição feminina disse-lhes que ambas amavam o mesmo homem, mas não eram rivais. E vieram de mãos dadas, sentindo-se amigas.

Hilário estava no céu com a sua Margarida de regresso. Laura sentia uma certa tristeza porque acabara de confirmar, aquilo que nunca quisera admitir: amava Hilário. Por outro lado sentia-se contente, porque Hilário seria amado por alguém que ela sentia merecê-lo e com quem simpatizava. Estava tudo bem.

Margarida, não sabia a razão, mas sentia Laura como uma amiga .

E a vida voltou à normalidade. De regresso a Lisboa, Hilário retomou o seu trabalho, enquanto a namorada preparava e enviava currículos às empresas.

As horas após o trabalho, nunca mais foram passadas na empresa. Apanhava um táxi e voava para a sua Margarida.

O único incómodo diário que sentia, era o maldito gesso. A perna não estava a sarar como devia. A fratura estava a causar-lhe problemas. Pior do que isso, detestava andar de táxi, queria voltar a conduzir e não era o carro. Adorava andar de mota. Chegar com a maior das facilidades, de modo rápido, ao emprego e a casa.

Mal se viu livre do gesso foi buscar a mota. Partiu alegre e livre para os seus afazeres. No regresso a casa, já com a Margarida no pensamento, passou distraído o sinal vermelho quando uma viatura pesada ia a atravessar o cruzamento.

Do lado contrário da avenida, Laura, no segundo lugar da fila, assistiu ao desastre. Um pressentimento assaltou-a: é o Hilário! Saiu a correr da viatura. A mota era a dele e o capacete também. Tinha sido ela a oferecer-lho. Era ele. Por breves segundos perdeu os sentidos. Recuperou e viu-o. Não se enganara. Hilário estava morto.

                                                                            III

Foi Laura quem avisou Margarida. Levou-a para sua casa, cuidou dela com todo o desvelo, pois Margarida não estava capaz de nada. A sua recuperação foi difícil. Teve de ser internada e alimentada a soro durante semanas. Laura visitava-a várias vezes por dia até ela ter alta e regressar a sua casa. Um dia, enquanto ajudava Margarida a pentear-se, Laura beijou-a e foi correspondida. À noite, Laura deixou-lhe na almofado, uma rosa vermelha e uma folha de papel, onde tinha escrito, em letras garrafais “amo-te”.A declaração estava assinado com a marca dos seus lábios deixada pelo batom. Tinha decorrido um ano e ambas decidiram assumir o amor que sentiam uma pela outra.

A fotografia de Hilário com as duas no aeroporto de Faro, todos de mãos dadas, ganhou lugar de destaque.

Recusavam-se a esquecer o homem que ambas tinham amado e que as juntara num novo amor.

Agora, dia sim dia não, a vizinha atira o sapato à parede e brada:

- Desenvergonhadas ...desenvergonhadas…

Laura e Margarida nunca se envergonharam do amor que sentiam uma pela outra.

Na data de aniversário da morte de Hilário, o seu túmulo foi sempre ornamentado com duas rosas.



Jorge C. Chora

24/05/2021



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