sexta-feira, 7 de julho de 2023

UM AMOR INESPERADO

 

João pouco ou nunca sorria. Dizia sempre bom dia ou boa tarde e jamais boa noite, pois ninguém tinha memória de o ter visto à noite.

Ninguém sabia o que fazia, nem onde trabalhava. João era uma incógnita.

Também ninguém o vira fazer mal a alguém ou maltratar fosse quem fosse. Trazia sempre consigo uma viola, mas também ninguém o ouvira tocar.

Numa quarta-feira, Manuela chegou alvoroçada ao café, onde por vezes se realizavam espetáculos, com uma novidade:

- Querem saber a melhor? Vi o João esta manhã, a dar o seu lanche a um pedinte, ao pé da estação da C. P.

Ninguém comentou a situação.

Nessa mesma noite, houve um espetáculo. A meio apareceu João com a sua viola. Mal entrou, o concerto parou: duas cordas tinham-se partido e o artista não tinha como as substituir.

João subiu ao palco e emprestou-lhe a sua viola. O artista agradeceu e verificou que ela estava afinadíssima. O espetáculo continuou.

No fim, o artista convidou João a vir ao palco e a tocar algo do seu agrado.

Instado várias vezes a tocar, João acabou por ceder.

O que se ouviu foram temas desconhecidos, muito aplaudidos.

Madalena abria e fechava a boca. Ela era compositora e raramente ouvira temas tão bem cantados, tocados e compostos.

- De quem são essas canções?

- São minhas…

- Onde é que cantas?

- Só em casa, para minha mãe ouvir.

- Como assim?

- Ela só sossega quando as ouve. Ela sofre de demência...

Madalena deu a mão ao João, ajudou-o a descer do palco e perguntou-lhe:

- Posso acompanhar-te a casa?

- Claro que sim.

A meio do caminho ofereceu os seus lábios ao João, que os beijou com a delicadeza idêntica à das suas composições.

Passados alguns anos, ainda não regressou a sua casa e senta-se ao lado da sua sogra, a ouvir João a cantar, deixando-o acabar, para lhe oferecer os seus lábios.

Jorge C. Chora

7/7/2023

Sem comentários:

Enviar um comentário