domingo, 10 de junho de 2012

O beijo do grifo

Os sons produzidos pela senhora irritavam-no até ao tutano. Chupava os dentes e os buracos das cáries, fazendo lembrar o assobio do vento, em dias de tempestade. De seguida, sorvia o café e degustava os alimentos recuperados, sugando-os como fazem os esgotos pluviais da rua, em dias de chuva. Um horror. O pior é que a dama se julgava um modelo de etiqueta.Preste a ter um ataque de fúria, saiu do café.

À porta, cruzou-se com um amigo que notou a sua indisposição e a quem teve de contar os motivos causadores do seu estado de espírito. No dia seguinte, o mesmo amigo, entrou no estabelecimento de gravador em punho, sentou-se à sua mesa, olhou em redor e perguntou-lhe:

-A senhora está cá?

-Ainda não…mas logo que entrar vai sentar-se na mesa ao meu lado…aposto…

Dito e feito. Mal acabara de falar, a produtora de sons execráveis entrou e sentou-se ao seu lado. O seu amigo iniciou a gravação. À medida que os ruídos se tornavam mais estranhos, o sorriso de satisfação do proprietário do gravador ia-se acentuando.

-Para que queres gravar isto?

-Para ver se consigo afugentar a bicharada da minha horta. Eles comem tudo…dão-me prejuízos.

Tempos depois, ao passar pela dita horta, ouviu, ampliados e difundidos por um altifalante, os pavorosos sons que ele tanto detestava. Os melros, ao fugirem apressados, batiam com violência nas sebes, seguidos pelos estorninhos, pardais e rolas. Em breve deixaram de se ver os bandos de pássaros. Quando o silêncio já reinava, passou a escutar-se um som estranho, uma mistura de grunhidos guturais e de um arfar asmático, intercalado com um glu…glu…profundo e semi-gritado.

Fixou o olhar num pássaro grande que sobrevoava a horta. Era um enorme grifo que se aproximou do altifalante e lhe começou a dar pequenas e suaves bicadas. Reparou melhor e verificou que os bicados eram verdadeiros beijos, transbordantes de afecto.
Uma multidão passou a frequentar a horta e a ver o espectáculo do grifo apaixonado.

As sessões só deixaram de acontecer, quando as autoridades resolveram cobrar taxas aos espectadores.

Jorge C. Chora

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