quinta-feira, 27 de junho de 2013

As socas de Gervásia

Estremeceu de medo ao ver a idosa senhora, encarquilhada, ao cimo da escada. Embora pequena, parecia gigantesca. Calçava umas tamancas repletas de lama e ajeitava o carrapito, mostrando uma boca escancarada onde existiam meia dúzia de dentes podres e amarelados.

A miúda tremia ao olhá-la. A única segurança que tinha era-lhe transmitida pela mão da sua avó, que a apertava com força. Ia ser entregue naquela casa, para que a criassem.

Abandonada pelos pais, fora acolhida, com todo o carinho, pela avó, a quem segurava a mão, numa derradeira despedida. Não dormira a noite toda a pensar no que lhe ia acontecer.

D. Gervásia continuava de boca aberta e deu-lhe as boas vindas:

-Minha filha, aqui serás tratada como uma pessoa da família. Se te portares bem, herdarás estes meus sapatos quando eu morrer!

A pequena Maria, ainda hoje não sabe como não morreu, de facto, fulminada, mal isto ouviu.

Olhou com atenção para as monstruosas socas. A lama seca cobria-as mas deixava ver uns pregos laterais, também sujos, que prendiam o couro à madeira. Esboçou um gesto de fuga, mas a sua avó acalmou-a, segurando-lhe a mão com firmeza e afagando-lhe a cabeça. Imaginou-se a atravessar o rio local com elas. Ao menos não me afogava, e este pensamento fê-la acalmar-se.

Nesse dia comeu feijão-frade, com cebola, ao almoço. Ao jantar deram-lhe cebola com feijão-frade e à medida que o tempo passava percebeu que a maioria das refeições era mesmo baseada nessa qualidade de feijão.

Tentou, em diversas ocasiões, esconder a comida, mas sem sucesso. Chegou a deitá-la fora, para baixo das pipas da adega. D. Gervásia ordenou que a apanhasse e a comesse, pouco se importando que ela estivesse com areia. De todas as vezes que tentou o truque, foi apanhada e a ordem foi sempre a mesma:

-Apanha-o e come! Depressa que o tempo escasseia!

Sem falta, logo de manhã, carregava os latões com a calda que os trabalhadores iam deitar nas videiras.” Dar água à cura”, era assim que chamavam a este trabalho, saía – lhe do pêlo, devido ao vai e vem a que era obrigada.

Apanhar vides era outro dos trabalhos que a sua criação implicava. Eram necessárias a toda a hora, nomeadamente para o lume, para fazer carvão e para as enxertias. Em casa sobejavam-lhe as tarefas e escasseavam os tempos mortos. Chegou a pensar que D. Gervásia devia vender a mula já que ela substituía, em boa parte, o seu trabalho.

Só por sorte foi à escola e a frequentou uns meses, não chegando a um ano. Aprendeu a ler mas faltou-lhe a oportunidade de consolidar a escrita:

-És cá precisa em casa. Sabes ler e é tudo o que necessitas. Deixa a escrita para os escritores!
Sempre que a via a tentar escrever, partia-lhe os lápis e repetia:

-Deixa a escrita para os escritores!

Ainda hoje recorda com saudade a professora que organizou uma festa de baptismo para os alunos que ainda não o tinham recebido, como era o seu caso.

Em casa, D. Gervásia  infernizava a vida de todos, mesmo a do marido, com as suas exigências.
Um belo dia, o marido, num ataque de fúria e de bebedeira, matou-a.

Maria entrou em pânico. Correu como uma louca em direcção ao quarto de D. Gervásia, meteu-se debaixo da cama e trouxe as tamancas. Com elas bem presas, correu para o quintal e atirou-as para a fogueira que os trabalhadores tinham feito.

-As tamancas é que eu não herdo!

Jorge C. Chora





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