quarta-feira, 6 de abril de 2016

A ABERRAÇÃO


Numa tarde de verão, ouvi o que me pareceu um bater aflito de asas, na varanda fechada da traseira da minha casa. Fui ver e vi um periquito que se debatia, por retornar à liberdade. Pé ante pé, abri totalmente duas das quatro janelas de correr e retirei-me.

Duas horas depois, regressei à varanda. Não ouvi qualquer barulho e pensei que o pássaro reconquistara os céus. Enganara-me. Ele ainda lá estava, muito quieto, como que querendo passar despercebido. O periquito não era idêntico aos que povoavam a minha rua e habitavam uma enorme árvore na escola primária da Mina, na Amadora, ou aos congéneres de Benfica: não era um periquito selvagem.

Na rua perguntei a todos os que encontrei se conheciam alguém a quem tivesse fugido o passarinho. Descrevi-o em pormenor, das plumas à cor dos olhos mas sem qualquer sucesso. Estranhei que não pertencesse a ninguém e voltava à carga com os olhos vermelhos do bicharoco, inconfundíveis, um verdadeiro passaporte para o identificar. Das duas, uma: ou viera de longe ou o dono queria ver-se livre dele.

Acabei por lhe comprar uma grande gaiola, uma casa, sementes e tudo o que fazia falta para o manter numa situação de conforto. Condoído com a solidão do bicho, comprei uma fêmea e instalei-a na gaiola. Acalentei a ideia que viriam a ter filhos.

Passaram-se meses e nada de ovos. Espantava-me com a agressividade do periquito, que em vez de namorar a recém-chegada, que era linda e pequenina,
lhe dava sovas de criar bicho, capaz de metamorfosear o Sebastião come tudo sem colher, num manso e exemplar marido, libertando-o do execrável papel de agressor.

Já as penas da “esposa” escasseavam quando decidi aprofundar o assunto e falei com um entendido nesta variedade de pássaros.

-Com olhos vermelhos? O que o meu amigo tem em casa é uma aberração, que não é macho nem fêmea!

-Como assim?- questionei-o, convencido, de que gozava com a minha ignorância e com os cuidados que eu prodigalizava à passarada.

Afiançou-me a veracidade do seu diagnóstico e aconselhou-me a devolvê-lo à liberdade. Pois sim. Como agressor que se prezava, não só não saiu como redobrou os maus tratos à bela, pequena e triste fêmea. Agora sabia porque ninguém se dava como dono do passaroco de olhos vermelhos.

O pior estava para vir: descobri que a “menina”  que eu introduzira na gaiola, era um pequeno e jovem macho.

 A minha salvação partiu de uma vizinha que trabalhava num infantário. Um belo dia ofereceu-se para os levar para a enorme gaiola que existia no pátio da escola e ver como se davam.

Dito e feito. Deram-se às mil maravilhas, viveram felizes e contentes, para gáudio da pequenada e felicidade do ex-dono.

Jorge C. Chora



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