quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

D. ELIAS,O ARQUIDUQUE DA PORCALHOTA


                                           
Teve três donos no mesmo dia. O dono impingiu-o a um vizinho e este passou-mo para a mão, com um baraço ao pescoço. Era pequeno de idade e de tamanho e nada tinha de belo. Cheirava a cão que tresandava e trazia nome de gente: Elias, assim se chamava o cachorrinho.

-Elias? – estranhei eu, tentando recusar o presente.

-Já dá pelo nome…

Nada a fazer, trouxe-o para casa e o pequeno Elias, sem tirar os olhos de mim, lambia-me as mãos, arremelgava-me os olhos e ajeitava-se no meu colo.

Apresentei-o à futura dona e a sua estranheza foi idêntica à minha:

-Elias?
-Já dá pelo nome…

-Quero lá o bichano…

E o Elias, enjoado da viagem de carro, vomitou-lhe o vestido.

Foi remédio santo. Condoeu-se daquela bolinha fedorenta e maldisposta, adoptou-o e tornou-se no quarto habitante do nosso lar.

Elias era vivo e refilão e impunha a sua presença com genica e maus modos. Não tolerava desatenções. Ia aos arames ao ver-me desdobrar o jornal e sentar-me na poltrona: saltava para cima de mim, afastava o jornal e refastelava-se.

Percebia tudo e fazia-se entender de tal modo, que eu passei a dizer que tinha um cão que falava, só não escrevia. Quem o conhecia, esperava a todo o momento receber uma missiva escrita, de protesto ou de louvor, que ele não fazia por menos, quanto a quem com ele privava.

Tornou-se, não diria belo, pois não se transformou num cisne, mas num garboso, embora raquítico, nobre de antanho: empertigado e maniento, um verdadeiro D. Elias, um arquiduque da Porcalhota. Como um grão senhor, recusava-se a subir escadas. Postava-se no rés-do-chão, no início das escadas e obrigava-me a carregá-lo, até ao 3º andar, nada menos nada mais do que 56 íngremes degraus, feitos várias vezes ao dia, um autêntico calvário.

Era também um sedutor de gabarito. Nessas ocasiões tornava-se o D. Elias Casanova, fazendo primeiro a corte às donas, dias antes das suas bichanas entrarem no cio. Poucas lhe escaparam, tal a mestria do Arquiduque nos seus cerimoniais encantatórios. O pior eram os adversários, mas quanto a estes, a receita era infalível: como tinha uns dentes minúsculos, colocava-se de pé e ferrava cabeçadas, acompanhadas de um rosnar medonho, sabe-se lá vindo donde.

Era zeloso quanto à defesa do dono e ao mesmo tempo um sabichão. Não deixava que ninguém se aproximasse de mim, excepto se fossem senhoras e, pasmem, se elas estivessem arranjadas e perfumadas, queria colo. Esta característica comportamental foi inúmeras vezes presenciada pela vizinhança.

Eram tantas as manias do D. Elias que corro o risco de as considerarem meras fantasias, mas asseguro-vos que o arquiduque era mesmo assim.

Detestava a trela e obedecia-me, até ao atravessar a rua, sempre na passadeira. Um dia, sem aviso, atravessou-a a correr, atrás de uma cadela e morreu atropelado. A carrinha nem sequer parou.
Enterrei-o no meu jardim, num local com vista mar, suavizado pela brisa e abrigado do vento agreste da montanha, na companhia de uma bela e frondosa romãzeira, pouso de melros, pardais e pintassilgos. 

Jorge C. Chora
   11/12/19

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