Teve três donos no mesmo dia. O dono impingiu-o a um vizinho
e este passou-mo para a mão, com um baraço ao pescoço. Era pequeno de idade e
de tamanho e nada tinha de belo. Cheirava a cão que tresandava e trazia nome de
gente: Elias, assim se chamava o cachorrinho.
-Elias? – estranhei eu, tentando recusar o presente.
-Já dá pelo nome…
Nada a fazer, trouxe-o para casa e o pequeno Elias, sem
tirar os olhos de mim, lambia-me as mãos, arremelgava-me os olhos e ajeitava-se
no meu colo.
Apresentei-o à futura dona e a sua estranheza foi idêntica à
minha:
-Elias?
-Já dá pelo nome…
-Quero lá o bichano…
E o Elias, enjoado da viagem de carro, vomitou-lhe o vestido.
Foi remédio santo. Condoeu-se daquela bolinha fedorenta e
maldisposta, adoptou-o e tornou-se no quarto habitante do nosso lar.
Elias era vivo e refilão e impunha a sua presença com genica
e maus modos. Não tolerava desatenções. Ia aos arames ao ver-me desdobrar o
jornal e sentar-me na poltrona: saltava para cima de mim, afastava o jornal e
refastelava-se.
Percebia tudo e fazia-se entender de tal modo, que eu passei
a dizer que tinha um cão que falava, só não escrevia. Quem o conhecia, esperava
a todo o momento receber uma missiva escrita, de protesto ou de louvor, que ele
não fazia por menos, quanto a quem com ele privava.
Tornou-se, não diria belo, pois não se transformou num
cisne, mas num garboso, embora raquítico, nobre de antanho: empertigado e
maniento, um verdadeiro D. Elias, um arquiduque da Porcalhota. Como um grão
senhor, recusava-se a subir escadas. Postava-se no rés-do-chão, no início das
escadas e obrigava-me a carregá-lo, até ao 3º andar, nada menos nada mais do
que 56 íngremes degraus, feitos várias vezes ao dia, um autêntico calvário.
Era também um sedutor de gabarito. Nessas ocasiões
tornava-se o D. Elias Casanova, fazendo primeiro a corte às donas, dias antes
das suas bichanas entrarem no cio. Poucas lhe escaparam, tal a mestria do
Arquiduque nos seus cerimoniais encantatórios. O pior eram os adversários, mas
quanto a estes, a receita era infalível: como tinha uns dentes minúsculos,
colocava-se de pé e ferrava cabeçadas, acompanhadas de um rosnar medonho,
sabe-se lá vindo donde.
Era zeloso quanto à defesa do dono e ao mesmo tempo um
sabichão. Não deixava que ninguém se aproximasse de mim, excepto se fossem
senhoras e, pasmem, se elas estivessem arranjadas e perfumadas, queria colo.
Esta característica comportamental foi inúmeras vezes presenciada pela
vizinhança.
Eram tantas as manias do D. Elias que corro o risco de as
considerarem meras fantasias, mas asseguro-vos que o arquiduque era mesmo
assim.
Detestava a trela e obedecia-me, até ao atravessar a rua,
sempre na passadeira. Um dia, sem aviso, atravessou-a a correr, atrás de uma
cadela e morreu atropelado. A carrinha nem sequer parou.
Enterrei-o no meu jardim, num local com vista mar, suavizado
pela brisa e abrigado do vento agreste da montanha, na companhia de uma bela e
frondosa romãzeira, pouso de melros, pardais e pintassilgos.
Jorge C. Chora
11/12/19
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