Quando eramos miúdos, eu e o meu irmão vivíamos na Beira,
cidade onde nascemos. Morávamos no Macúti, perto do Estoril e de uma praia
fabulosa a que chamávamos “nossa”.
Um castigo a que sujeitávamos os nossos pais, era o de terem
e sustentarem uma infinidade de bichos que só podiam morrer de velhos. O “Perú Velho”
que por lá tínhamos, era um acrobata que, a cada passo, tinha de transpor o seu
enorme espigão, que lhe crescia na pata à medida que o tempo passava. Galos
caducos, porquinhos-da-índia bisavós, quase do tamanho de coelhos, um pouco de
tudo lá medrava.
Também tínhamos uma grande cadela, arraçada de perdigueira e
leão-da-rodésia, o retrato da meiguice e da doçura, que passava o tempo em
aflições. Chamava-se Lady e não ficava a dever nada às de duas pernas. Passava
o tempo no mar, a ir buscar-nos e a trazer-nos para a terra. Em seu entender,
estávamos sempre tão longe da rebentação que só podíamos necessitar de ajuda.
Oferecia-nos a cauda e nós aproveitávamos a boleia para regressar à praia. Era
uma nadadora-salvadora de alto lá com ela. De tanto andar no mar, tinha abortos
sucessivos que só tiveram fim, quando mudámos para a capital.
Um belo dia, um primo vindo da longínqua Iha de Moçambique,
que adorava bicharada, domesticava corvos e conversava com chibos barbudos de
cornos afiados, convenceu-nos a comparticipar na compra de um cão, uma boxer, mais
precisamente.
- É ao preço da chuva. Tem o focinho preto. É uma boxer!
Contados os centavos, lá juntámos os 15 escudos, que era
quanto o dono pedia pela bicharoca.
Boxer? Nem na outra encarnação! Era uma cadelita rafeira a
que o primo, que via unicórnios, chamou Carriça. Tornou-se linda. Ao contrário
da Lady, brindava-nos com ninhadas de lindos rafeiros. Mimoseava a Lady com
valentes sovas e esta deixava-se morder porque queria alimentar-lhe os filhos, já
que os seus tinham morrido e ela estava cheia de leite para dar.
Ganhou o hábito de ir à praia com a Lady. Adorava saracotear-se
entre os rodesianos, receber afagos e elogios à sua beleza, farejar os seus
cremes perfumados, receber guloseimas que lhe faziam mal, mas sabiam bem. Um
belo dia desapareceu. Foi vista a entrar num carro com a matrícula da Rodésia.
Foi roubada. Também a malta do bairro pouco se importaria de o ser, se fosse
pelas belas e torneadas rodesianas.
E foi assim que ficámos sem uma “boxer”, que afinal foi uma
bela princesa rafeira, pronta a sucumbir aos encantos e novidades estrangeiras.
Jorge C. Chora
26/7/2020
Sem comentários:
Enviar um comentário