quarta-feira, 29 de agosto de 2018

UM MARÇANO NA AMADORA DE HÁ CINQUENTA ANOS/ MEMÓRIAS DO TOMÉ




Há cinquenta anos, Tomé era um adolescente. Como todos os jovens, queria ter um dinheirinho de bolso para as suas pequenas despesas. Em férias, foi trabalhar como marçano para uma mercearia na Falagueira.

Numa cesta com a pega ao meio, levava a casa dos clientes o que eles tinham comprado. Subia e descia escadas, tantas quantas fossem necessárias. Às vezes, bem carregado, tinha de voltar à loja, quando as donas de casa recusavam este ou aquele produto e voltava a entregá-los nas residências, após a respectiva troca.

Pelas entregas era recompensado, embora nem sempre, com uma moedinha que entregava religiosamente ao seu patrão, que lhe dizia:

-Quando te fores embora dou-ta…

Arrumar as prateleiras, varrer o chão e outras tarefas semelhantes, faziam parte das suas obrigações, quando não estava a entregar os cestos.

O patrão era desconfiado e controlador. Todos os dias, à saída, tinha de descalçar os chanatos e mostrar os pés e os sapatos. A revista não se ficava por ali. Tinha de baixar as calças não fosse dar-se o caso de transportar algo, ou aproveitar para trazer um pepino nas cuecas. Tomé não sabe se algum marçano lhe dera motivos para ser assim.

Ali nada se perdia e havia truques usados pelo patrão para engrossar o seu próprio pecúlio. Quando cortava o bacalhau havia sempre umas lascas que chutava para debaixo do balcão. O bacalhau já tinha sido pesado, juntamente com uma grossa folha que o havia de embrulhar. Os restos acumulados, eram vendidos aos pobres.

Tomé observava e via que nada, mas nada se perdia. A fruta tocada ou recusada pelos clientes, era guardada num cabaz e dada a um criador de gado, que em troca lhe dava o leite matinal, onde a nata e a frescura não faltavam.

De tantas vezes ter de baixar as calças e mostrar os pedúnculos, Tomé vingou-se num pequeno cacho de bananas, que o dono pendurava fora da loja: comeu-o à socapa. Desde esse dia, para evitar os roubos de um desnaturado que lhe tinha pifado as bananas, nunca mais nenhum cacho foi pendurado no exterior do estabelecimento.

No dia em que se foi embora, o patrão deu-lhe o dinheirinho que ele recebera das donas a quem ele transportava os cestos.

Era assim naqueles tempos e Tomé recorda-os, hoje, com saudade.

Jorge C. Chora
Amadora
27/8/2018

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