domingo, 23 de outubro de 2022

A BRUXA E A PIRRALHA

 

Da copa das árvores choveram pequenos e rijos frutos certeiros, dirigidos às cabeças dos rufias. Gozavam com a velha a quem chamavam Bruxa, que adorava fazer as suas necessidades na mata e não notara a proximidade daquela canalha.

Quando localizaram o local donde estavam a ser alvejados, foi o bom e o bonito. Aos urros, começaram a galgar a árvore. Lá de cima, os frutos pareciam rajadas. A cada insulto ela respondia com três, sem se mostrar minimamente incomodada. Sabia que ia apanhar, mas tinha a certeza que ia dar uma boa dezena de caneladas. Tinha nove anos e era criada ao Deus dará. Os matulões tinham aproximadamente quinze e dezasseis anos.

Foi quando de repente ouviram um silvo, cuja proveniência mais parecia vinda do inferno do que d’outro local qualquer. A Bruxa tinha chamado os seus seis enormes cães que esperavam pelos rufias na base da árvore.

Tinham sido descuidados. Todos sabiam que ela andava sempre acompanhada por aqueles cães infernais.

- Se quiserem sair ilesos, todos, mas todos, terão de beijar os pés à menina!

-O quê? - insurgiu-se Ermelinda - Sujarem-me os pés que estão tão limpinhos? E olhava-os, com um ar divertido para os seus pés, mais porcos do que a esterqueira que tinha em casa.

A velha senhora só não fez chichi pelas pernas abaixo, divertida com a cena, porque acabara de fazer.

Os perseguidores tiveram de correr quilómetros e de vez em quando, um dos cães, ferrava-lhes os dentes nos fundilhos, embora sem os aleijar.

Ao descer da árvore, Ermelinda questionou a velha senhora:

-Gosta de fazer chichi ao ar livre?

-Adoro e não é só isso! -Ermelinda deu uma gargalhada -   eu também gosto, daquele ventinho nas coisas…

A velha riu-se bem-disposta. Abraçou a petiza, suja e ainda mais morena do que o seu falecido marido.

-Sabes que o meu marido era africano? Era médico. Quando viemos para aqui, foi atropelado e morreu. Nunca foi identificado quem o atropelou.

-Os meus sentimentos.  Também sou de África…  os meus sentimentos…

-Como acha que se sente quem o atropelou? - perguntou a petiza por delicadeza.

 - Arrepende-se todos os dias de o ter morto…

Ermelinda deu-lhe um desconto. Coitada, o desgosto deu-lhe volta ao miolo…

Seguiram ambas de braço dado até uma estranha vedação. Colocou a mão num ramo e empurrou a cancela.

-Entras… ou tens medo de mim?

- Não, de si até gosto! É como eu! É meia selvagem…

Ermelinda não acreditou no que viu. Aquilo não era uma casa! Um palácio ao pé do que via, e lembrou-se de vários de quando vivia em Lisboa!

Achou indelicado perguntar-lhe sobre o assunto. Continuaram a ver-se. Tornaram-se amigas e as idas à mata, que ambas adoravam, aproximaram-nas ainda mais.

Uma só condição lhe impôs a “Bruxa” para serem amigas: ir à escola!

Durante seis meses não se viram! Ir à escola, isso é que era bom!

Um dia os pais receberam a visita da “Bruxa”. Perceberam de imediato, mesmo parecendo uma mendiga que estavam perante a dona das empresas onde eles trabalhavam. Não era assim que ela aparecia. Ela surgia como uma deusa, num automóvel gigante, preto e a brilhar, com um motorista sardento e enorme.

A conversa foi breve:

- Amanhã, quero a vossa filha, com esta farda do colégio, à minha porta, às 8.45m, com o banho tomado. Perceberam? Gosto dela como uma filha, perceberam?

Quando o carrão preto, a brilhar, surgiu à porta do colégio, os portões abriram-se de imediato e a diretora estava à espera da proprietária.

-Srª Diretora, apresento-lhe a Ermelinda que é como se fosse a filha que não tenho. É inteligente e lutadora, mas insubordinada como eu. Ensine-a a pensar e a avaliar as pessoas com rigor. Não a castigue. Quando ela se portar mal, basta que não a deixe ir fazer as suas necessidades à mata!

-Ah, amiga de uma figa, agora é que me lixaste! -pensou Ermelinda com a mão dada à amiga.

Jorge C. Chora

23/10/2022

 

 

 

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